M23 - CORDÃO UMBILICAL
A noite cai suavemente como
acontece nos meses de Verão em Lisboa. Apesar desta acalmia e do deslizar indolente
da noite, os espíritos estão agitados, confusos, medrosos, ansiosos... Há um
ruído de fundo no ar, motivado pelo caminhar apressado das pessoas e das vozes
que transmitem diálogos íntimos, aflições e conselhos.
Os pais rodeiam os filhos, as
namoradas enlaçam os namorados nos recantos mais escondidos, os amigos
despedem-se, há meias palavras no ar cortadas pelo nó apertado das gargantas.
Lá fora estão a começar as festas dos Santos Populares, as Marchas, e prepara-se
a comemoração do 10 de Junho. Mas aqui … da parte de dentro do arame farpado,
nada disso interessa, conta apenas o que irá acontecer nos próximos minutos.
Estou só, sem família, sem
amigos; considero que isto só a mim me diz respeito, por isso não convidei
ninguém para estar aqui. Os meus não sabem desta noite, deixei dentro de um
livro o meu Testamento, para ser realizado se o pior me acontecer; como é
possível um jovem com vinte e dois anos fazer um testamento? Há coisas na vida... Despedi-me de todos um a um como se fora para uma festa; apenas uma tia
velhinha desconfiou da minha despedida: “Zé, vais para a guerra”? “Não tia, estive de férias e agora vou
regressar ao quartel”!... “Pois, pois”.
Há muito que espero este momento,
esperava dele uma noite de reflexão, de vigília, como a dos velhos mareantes,
que a passavam na Ermida de Nossa Senhora de Belém, lá para os lados do Restelo,
mas não sou capaz de me concentrar, apesar do meu domínio mental e do meu sangue
frio, o ambiente contagia-me, às vezes os olhos ficam-me molhados, tenho um nó
na garganta, as palavras são cortadas quando um camarada me bate nas costas.
O tempo esgota-se rapidamente,
somos chamados a formar, de seguida e em fila indiana entro dentro do Boeing
707, dos TAM. Da janela vejo a penumbra da noite e as luzes da minha Lisboa, ao longe. O avião começa a deslizar, ou são os edifícios que se afastam?
Este faz uma curva muito lenta a noventa graus, entra na pista de descolagem,
os motores começam a roncar com um ruído ensurdecedor, a velocidade aumenta,
aumenta e … estamos no ar.
Neste momento o meu CORDÃO
UMBILICAL é cortado, para trás fica o conhecido, o mensurável, o aconchego
familiar, os amigos; à minha frente está o desconhecido, o medo, o perigo, o
inimigo. Será que voltarei a ver estas luzes? Talvez, talvez!...
Lisboa, Figo Maduro, 06/06/1972
“Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
como uma verdade
de que não partilho,
e lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível
p´ra mim”.
Álvaro de Campos, in Poemas, o poema Noite Terrivel
(heterónimo de Fernando
Pessoa)
Ferreira, ex-furriel miliciano, CCS