2012-06-05

M23 - CORDÃO UMBILICAL
A noite cai suavemente como acontece nos meses de Verão em Lisboa. Apesar desta acalmia e do deslizar indolente da noite, os espíritos estão agitados, confusos, medrosos, ansiosos... Há um ruído de fundo no ar, motivado pelo caminhar apressado das pessoas e das vozes que transmitem diálogos íntimos, aflições e conselhos.
Os pais rodeiam os filhos, as namoradas enlaçam os namorados nos recantos mais escondidos, os amigos despedem-se, há meias palavras no ar cortadas pelo nó apertado das gargantas. Lá fora estão a começar as festas dos Santos Populares, as Marchas, e prepara-se a comemoração do 10 de Junho. Mas aqui … da parte de dentro do arame farpado, nada disso interessa, conta apenas o que irá acontecer nos próximos minutos.
Estou só, sem família, sem amigos; considero que isto só a mim me diz respeito, por isso não convidei ninguém para estar aqui. Os meus não sabem desta noite, deixei dentro de um livro o meu Testamento, para ser realizado se o pior me acontecer; como é possível um jovem com vinte e dois anos fazer um testamento? Há coisas na vida... Despedi-me de todos um a um como se fora para uma festa; apenas uma tia velhinha desconfiou da minha despedida: “Zé, vais para a guerra”?  “Não tia, estive de férias e agora vou regressar ao quartel”!... “Pois, pois”.
Há muito que espero este momento, esperava dele uma noite de reflexão, de vigília, como a dos velhos mareantes, que a passavam na Ermida de Nossa Senhora de Belém, lá para os lados do Restelo, mas não sou capaz de me concentrar, apesar do meu domínio mental e do meu sangue frio, o ambiente contagia-me, às vezes os olhos ficam-me molhados, tenho um nó na garganta, as palavras são cortadas quando um camarada me bate nas costas.
O tempo esgota-se rapidamente, somos chamados a formar, de seguida e em fila indiana entro dentro do Boeing 707, dos TAM. Da janela vejo a penumbra da noite e as luzes da minha Lisboa, ao longe. O avião começa a deslizar, ou são os edifícios que se afastam? Este faz uma curva muito lenta a noventa graus, entra na pista de descolagem, os motores começam a roncar com um ruído ensurdecedor, a velocidade aumenta, aumenta e … estamos no ar.
Neste momento o meu CORDÃO UMBILICAL é cortado, para trás fica o conhecido, o mensurável, o aconchego familiar, os amigos; à minha frente está o desconhecido, o medo, o perigo, o inimigo. Será que voltarei a ver estas luzes? Talvez, talvez!...

Lisboa, Figo Maduro, 06/06/1972

“Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
como uma verdade de que não partilho,
e lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível 
p´ra mim”.

Álvaro de Campos, in Poemas, o poema Noite Terrivel
(heterónimo de Fernando Pessoa)


Ferreira, ex-furriel miliciano, CCS

3 comentários:

  1. Excelente documentário escrito de uma experiência pessoal, que nos sensibilizou, mas que de qualquer forma nos tocou a todos e por tal pode ser também global, de nós todos nós, que batemos com os costados nas ex colónias.
    Muito bem escrito, sim senhor !!!
    Os meus parabéns.
    Alberto Fontes

    ResponderEliminar
  2. Descrição perfeita, texto pessoal e introspectivo, sensibilizante, notável!!!
    Os meus sinceros parabéns.
    Feio

    ResponderEliminar
  3. Realmente está bem escrito, é muito íntimo e pessoal, nada mais a dizer.
    Olha!... mas não deves chorar tanto que as pedras da calçada podem ficar tão limpas como a neve.

    Para não chorares agora devias ter pegado na mala de cartão como eu fiz e dado o salto.
    Istrui-me, inseri-me numa nova sociedade, evolui, agora aqui estou, sou um herói, mas no tempo da outra senhora era um refratário e um cobarde.

    Talvêz conheças isto:

    "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
    muda-se o ser, muda-se a confiança,
    todo o mundo é composto de mudança,
    tomando sempre novas qualidade.

    ..."

    Por isso não fiques chatido com as minhas bocas, porque um dia ainda podes ser um herói.

    Disse,
    endovelicus

    ResponderEliminar