Despertei para a cultura
africana com a leitura de algumas obras de Henrique Galvão(1), militar que esteve destacado em
Angola (cerca de 1925), o que lhe possibilitou o contacto com várias tribos e o
posterior e preciso relato, das suas práticas.
Por um golpe do destino, diriam, tive oportunidade de
percorrer algumas destas terras e de observar as suas gentes. Recuo no tempo (Jun72) … encontro-me a bordo
do Boeing dos TAM que transporta CCS e a pagar pela forte variação de pressão,
provocada por uma brutal descida em direcção ao aeroporto de Luanda..
Corro a cortina, olho
pela janela e tenho a fraca sensação de que a terra sobe, como se fora uma nuvem
de terra e pó vermelho sangue.
Esta visão da terra
avermelhada de Angola iria acompanhar-nos, em cada dia, dos vinte e sete meses
seguintes. Prevalece desde a partida de Luanda, para lá das janelas dos autocarros que nos levaram a Nova
Lisboa, ou depois, das do comboio em que ensandecemos, a caminho do Luso; para a última etapa, dessa longa
travessia de Angola, estava-nos
reservada a indignidade da caixa de carga de viaturas pesadas civis, a
rolar embrulhadas numa nuvem calda e extensa de pó oxidado, de onde só saimos para sermos martelados pelo Sol e no final descarregados
no aquartelamento, em Lucusse.
Nos dias seguintes,
cansados e exasperados, começamos a tomar consciência do isolamento e
iniquidade a que estavamos remetidos;
Dos dois aldeamentos
confinantes, quando o vento estava de feição vinha o cheiro da miséria e do chão,
dessa terra vermelha, que breve se constataria, também sobe pelas palhotas.
As rotinas a que todos
se entregaram, ajudaram a ultrapassar a fase de resignação do luto de distância,
que precisavamos ultrapassar. Estavamos todos num mesmo barco, encalhado em mar
chão, onde aos poucos as recordações se esboroavam e muitas das ditas
referências de normalidade se afundavam.
Porém, porque eramos
jovens e as caracteristicas do nosso teatro de operações o facilitavam, começamos
a perceber este território de que nos apoderavamos, essa natureza em bruto, em
que qualquer dos referenciais de espaço e de tempo, possuiam dimensões a que não estavamos
habituados.
E adaptavamo-nos, se bem
que, quase sempre, subjugados por um calor viscoso e obrigados a reagir ao
avanço subterraneo de um mal estar vagaroso e corrosivo.
Aos poucos cada um foi
fazendo o percurso que lhe saia em sorte.
O pessoal do meu sub-agrupamento
(mecânicos e condutores), cumpria.
Confiei na capacidade de
discernimento de todos, para levar a bom termos as tarefas que lhe cabiam, sem
ultrapassar limites temporais e de qualidade admissiveis e apreciei o clima de
respeito pelas idiossincrasias de cada um e do grupo, que rapidamente se
estabeleceu.
A casa quase arrumada,
permiti-me avançar na perseguição de objectivos pessoais, que começaram por ser,
evoluir como artífice de mecânica auto e melhorar a técnica de condução de
veículos pesados.
O tempo ia passando.
Luso, a vila mais
próxima, distava cerca de 130 km. Só decorridos quatro meses após o
aquartelamento, calhou reve-la. Tal regresso implicou uma espécie de choque civilizacional:
saiamos de um universo fechado em que todos se conheciam e mergulhavamos num
outro em que não eramos reconhecidos e a cortesia do acolhimento escasseava ou em
que não era dispiciente a sensação de que estavamos a mais.
Aquela não era a minha
praia … pertencia já a outra guerra. Os
civis, a sociedade com que tinha de interagir, descobri-o eram os vizinhos no
Lucusse. Era naquele terreno que tinha de se sondar a agreste realidade, e confrontá-la
com o assimilado dos escritos lidos e relidos, anos antes.
Opção feita…
No dia seguinte iniciei caminhadas
irregulares de exploração, através dos aldeamentos
Com o tempo ganhei a confiança de alguns dos residentes, com que depois me ia de
quando em vez perdendo em conversas prolongadas.
E uma noite africana de
Lua baixa, fui levado, para assistir a parte de um cerimonial da circuncisão, a
festa de iniciação dos adolescentes africanos. Voltei dias depois para agradecer
e também, com algum pesar, despedir-me destas gentes; a rendição da unidade, ocorreria
dias depois.
Rumamos ao Luquembo, povoação
em que já existia uma pequena comunidade de brancos. Por opção mantive o anterior
modus operandis, de conversa com os
indigenas, que mais das vezes ora era um deixar falar, ora um sereno aguardar,entre
nuvens de fumo na tentativa de encontrar
ou comprender formas de estar e de pensar dos meus interlocutores .
Dois meses decorridos,
surgiu uma oportunidade singular: num fim de tarde cruzo-me com um já velho conhecido da sanzala, que me desafia
com a perspectiva de eu poder ficar com a casa que ele ia deixar vaga, por
motivo de ausência para Malange.
Não perdi a
oportunidade. Assim, com a passagem de mãos de 220 angolares ele assegurou o
fundo de maneio necessário para a deslocação, que afinal já dizia ser prolongada
a Luanda, e tornei‑me proprietário, do palacete
de adobe e colmo que ele edificara na sanzala.
A rentabilizaçãocdo
investimento, não foi dificil. Foram muitas a noites de animação e festa, com
participação do jet set local; mas
também em algumas outras, a farra foi substituida por horas de amena
cavaqueira, fumo e bar aberto.
Foi na preparação de uma
das primeiras destas reuniões, que teve lugar um evento que recordo como de excepcional.
Estava combinada uma conversa com 2 dos mwatas da sanzala. Tinha chegado muito
cedo porque queria concluir um desenho que iniciara na véspera, uma espécie de fresco,
destinado a “encher” uma das paredes interiores do palacete que, recentemente,
tinha pintado de branco.
Noite calda e quente, um
candeeiro a espalhar sombras, que ora oscilavam nas paredes, ora se perdiam
pela porta que permanecia aberta; chegados, os dois mwatas convidados saudaram
e, ao meu sinal, entraram e, sem
despegar olhar da pintura, sentaram-se nas duas cadeiras que teriam imaginado, lhes
estavam destinado.
Minutos depois, concluido
o trabalho e ainda com o pincel na mão
afastei-me para uma melhor visão do conjunto. Ao invés, os eméritos caçadores ergueram-se,
e ainda ligeiramente curvados, avançaram de rosto algo tenso e um agitar de
mãos que temi estragasse os traços.
Desenho repescado da memória
Eles mesmo, já me tinham
falado das palancas negras, que sabiam estavam confinadas a uma reserva
próxima, mas diziam, há muito, muito tempo que ninguém as avistava ou caçava.
Vivida a surpresa, ficou
patente quão grande era o espanto e genuino o contentamento destes dois velhos.
E para mim novo o
registo da reacção: os mwatas, eram sempre muito circunspectos, mantinham um grau de
compostura, que não lhes vira ser afectado por fumo álcool ou tema de conversa, por controversa que este fosse.
Mesmo que pusesse em
causa ideias ancestrais, sempre lhes observei serenidade e regular capacidade
de argumentação. Porém a tradição prevalecia em absoluto.
Por exemplo, quando se
abordava o ordenamento social de tarefas em função do género, eram irredutiveis:
os homens estariam destinados ao exercício de actividades ditas mais
importantes, como a caça, o parlapiau e a
cachaça, enquanto que as mulheres na proporção do poder ou da dita riqueza
daqueles, ao passarem a regime marital, ficavam responsáveis pelo cultivo das
lavras, e tratamento dos animais, parir e cuidar dos filhos.
Paradigmática esta historia
que me contaram e que é replicada no livro Terras do Feitiço.
Uma jovem pubera tinha
casado com homem bem mais velho e ambos passado a viver na sanzala deste.
Poucos meses decorridos a rapariga foi à água. Calhou que à mesma linha de água tinha acorrido um seu conhecido residente na sanzala que ela deixara para
trás. Perderam-se de conversa a dar as novidades. Quando a dado passo ela o
viu preparar tabaco para cachimbar no mutopa, disse-lhe que também lhe apetecia
uma pitada. Não perdeu tempo, este velho conhecido, em dizer que há dias andava fora da
sanzala, sem mulher e que também a ele lhe apetecia … o corpo da rapariga.
E sem grandes delongas trocaram os favores que desejavam, seguindo
depois cada um o seu caminho. Quando, dias depois, o velho soube o que se
passara, resolveu a coisa de forma expedita: tendo a rapariga confirmado a aventura foi ter com o "abusador" que também não desmentiu; sem rancor, reuniram os dois homens, para deliberar sobre uma das duas soluções que eram reconhecidas como válidas: a) ou o
velho desistia por completo da posse da rapariga, recebendo em troca o
equivalente ao total do alembamento, ou b) recebia apenas uma indemnização a
estipular, como homem lesado nos seus direitos e propriedade.
O velho considerou a sua
provecta idade, que pelo contrário a rapariga era novita, reflectiu e optou
pela indemnização, que fixou em duas cabras e duas cabaças de marufo; o “abusador”
aceitou o valor proposto, fazendo questão de ressalvar que era necessário
descontar o valor do tabaco que cedera à rapariga.
E amigos como dantes …
Por estas e outras
parecidas, o misisonário residente, simpático ansião holandês, de que não me
ocorre o nome, bem tentava anunciar a força dos sacramentos, o ideal de
casamento monogâmico e outros, mas parecia que o rebanho, neste particular,
aspirava mais aos ensinamentos do Corão.
(1) - Henrique
Galvão tem obra escrita sobre a vida nas colónias
africanas, a sua antropologia e zoologia, designadamente Outras Terras e Outras
Gentes, A Ronda de África , Antropófagos e Terras do Feitiço
Azevedo