2013-07-23

M48 - Casa das Palancas
Despertei para a cultura africana com a leitura de algumas obras de Henrique Galvão(1), militar que esteve destacado em Angola (cerca de 1925), o que lhe possibilitou o contacto com várias tribos e o posterior e preciso relato, das suas práticas.
Por um  golpe do destino, diriam, tive oportunidade de percorrer algumas destas terras e de observar as suas gentes.  Recuo no tempo (Jun72) … encontro-me a bordo do Boeing dos TAM que transporta CCS e a pagar pela forte variação de pressão, provocada por uma brutal descida em direcção ao aeroporto de Luanda..
Corro a cortina, olho pela janela e tenho a fraca sensação de que a terra sobe, como se fora uma nuvem de terra e pó vermelho sangue.
Esta visão da terra avermelhada de Angola iria acompanhar-nos, em cada dia, dos vinte e sete meses seguintes. Prevalece desde a partida de Luanda, para lá das  janelas dos autocarros que nos levaram a Nova Lisboa, ou depois, das do comboio em que  ensandecemos, a caminho do  Luso; para a última etapa, dessa longa travessia de Angola, estava-nos  reservada a indignidade da caixa de carga de viaturas pesadas civis, a rolar embrulhadas numa nuvem calda e extensa de pó oxidado, de onde só saimos  para sermos  martelados pelo Sol e no final descarregados no aquartelamento, em Lucusse.
Nos dias seguintes, cansados e exasperados, começamos a tomar consciência do isolamento e iniquidade a que estavamos remetidos;
Dos dois aldeamentos confinantes, quando o vento estava de feição vinha o cheiro da miséria e do chão, dessa terra vermelha, que breve se constataria, também sobe pelas palhotas.
As rotinas a que todos se entregaram, ajudaram a ultrapassar a fase de resignação do luto de distância, que precisavamos ultrapassar. Estavamos todos num mesmo barco, encalhado em mar chão, onde aos poucos as recordações se esboroavam e muitas das ditas referências de normalidade se afundavam.
Porém, porque eramos jovens e as caracteristicas do nosso teatro de operações o facilitavam, começamos a perceber este território de que nos apoderavamos, essa natureza em bruto, em que qualquer dos referenciais de espaço e de  tempo, possuiam dimensões a que não estavamos habituados.
E adaptavamo-nos, se bem que, quase sempre, subjugados por um calor viscoso e obrigados a reagir ao avanço subterraneo de um mal estar vagaroso e corrosivo.
Aos poucos cada um foi fazendo o percurso que lhe saia em sorte.
O pessoal do meu sub-agrupamento (mecânicos e condutores), cumpria.
Confiei na capacidade de discernimento de todos, para levar a bom termos as tarefas que lhe cabiam, sem ultrapassar limites temporais e de qualidade admissiveis e apreciei o clima de respeito pelas idiossincrasias de cada um e do grupo, que rapidamente se estabeleceu.
A casa quase arrumada, permiti-me avançar na perseguição de objectivos pessoais, que começaram por ser, evoluir como artífice de mecânica auto e melhorar a técnica de condução de veículos pesados.
O tempo ia passando.
Luso, a vila mais próxima, distava cerca de 130 km. Só decorridos quatro meses após o aquartelamento, calhou reve-la. Tal regresso implicou uma espécie de choque civilizacional: saiamos de um universo fechado em que todos se conheciam e mergulhavamos num outro em que não eramos reconhecidos e a cortesia do acolhimento escasseava ou em que não era dispiciente a sensação de que estavamos a mais.
Aquela não era a minha praia …  pertencia já a outra guerra. Os civis, a sociedade com que tinha de interagir, descobri-o eram os vizinhos no Lucusse. Era naquele terreno que tinha de se sondar a agreste realidade, e confrontá-la com o assimilado dos escritos lidos e relidos, anos antes.
Opção feita…
No dia seguinte iniciei caminhadas irregulares de exploração, através dos aldeamentos
Com o tempo ganhei a confiança de alguns dos residentes, com que depois me ia de quando em vez perdendo em conversas prolongadas.
E uma noite africana de Lua baixa, fui levado, para assistir a parte de um cerimonial da circuncisão, a festa de iniciação dos adolescentes africanos. Voltei dias depois para agradecer e também, com algum pesar, despedir-me destas gentes; a rendição da unidade, ocorreria dias depois.
Rumamos ao Luquembo, povoação em que já existia uma pequena comunidade de brancos. Por opção mantive o anterior modus operandis, de conversa com os indigenas, que mais das vezes ora era um deixar falar, ora um sereno aguardar,entre nuvens de fumo  na tentativa de encontrar ou comprender formas de estar e de pensar dos meus interlocutores .
Dois meses decorridos, surgiu uma oportunidade singular: num fim de tarde cruzo-me com um  já velho conhecido da sanzala, que me desafia com a perspectiva de eu poder ficar com a casa que ele ia deixar vaga, por motivo de ausência  para Malange.
Não perdi a oportunidade. Assim, com a passagem de mãos de 220 angolares ele assegurou o fundo de maneio necessário para a deslocação, que afinal já dizia ser prolongada a Luanda, e tornei‑me proprietário, do palacete de adobe e colmo que ele edificara na sanzala.
A rentabilizaçãocdo investimento, não foi dificil. Foram muitas a noites de animação e festa, com participação do jet set local; mas também em algumas outras, a farra foi substituida por horas de amena cavaqueira, fumo e bar aberto.
Foi na preparação de uma das primeiras destas reuniões, que teve lugar um evento que recordo como de excepcional. Estava combinada uma conversa com 2 dos mwatas da sanzala. Tinha chegado muito cedo porque queria concluir um desenho que iniciara na véspera, uma espécie de fresco, destinado a “encher” uma das paredes interiores do palacete que, recentemente, tinha pintado de branco.
Noite calda e quente, um candeeiro a espalhar sombras, que ora oscilavam nas paredes, ora se perdiam pela porta que permanecia aberta; chegados, os dois mwatas convidados saudaram e, ao meu sinal, entraram  e, sem despegar olhar da pintura, sentaram-se nas duas cadeiras que teriam imaginado, lhes estavam destinado.
Minutos depois, concluido o trabalho  e ainda com o pincel na mão afastei-me para uma melhor visão do conjunto. Ao invés, os eméritos caçadores ergueram-se, e ainda ligeiramente curvados, avançaram de rosto algo tenso e um agitar de mãos que temi estragasse os traços.

Desenho repescado da memória

Eles mesmo, já me tinham falado das palancas negras, que sabiam estavam confinadas a uma reserva próxima, mas diziam, há muito, muito tempo que ninguém as avistava ou caçava.
Vivida a surpresa, ficou patente quão grande era o espanto e genuino o contentamento destes dois velhos.
E para mim novo o registo da reacção: os mwatas, eram sempre muito circunspectos, mantinham um grau de compostura, que não lhes vira ser afectado por fumo álcool ou tema de conversa, por controversa que este fosse.
Mesmo que pusesse em causa ideias ancestrais, sempre lhes observei serenidade e regular capacidade de argumentação. Porém a tradição prevalecia em absoluto.
Por exemplo, quando se abordava o ordenamento social de tarefas em função do género, eram irredutiveis: os homens estariam destinados ao exercício de actividades ditas mais importantes, como a caça, o parlapiau e a  cachaça, enquanto que as mulheres na proporção do poder ou da dita riqueza daqueles, ao passarem a regime marital, ficavam responsáveis pelo cultivo das lavras, e tratamento dos animais, parir e cuidar dos filhos.
Paradigmática esta historia que me contaram e que é replicada no livro Terras do Feitiço.
Uma jovem pubera tinha casado com homem bem mais velho e ambos passado a viver na sanzala deste. Poucos meses decorridos a rapariga foi à água. Calhou que à mesma linha de água tinha acorrido um seu conhecido residente na sanzala que ela deixara para trás. Perderam-se de conversa a dar as novidades. Quando a dado passo ela o viu preparar tabaco para cachimbar no mutopa, disse-lhe que também lhe apetecia uma pitada. Não perdeu tempo, este velho conhecido, em dizer que há dias andava fora da sanzala, sem mulher e que também a ele lhe apetecia … o corpo da rapariga.
E sem grandes delongas trocaram os favores que desejavam, seguindo depois cada um o seu caminho. Quando, dias depois, o velho soube o que se passara, resolveu a coisa de forma expedita: tendo a rapariga confirmado a aventura foi ter com o "abusador" que também não desmentiu; sem rancor, reuniram os dois homens, para deliberar sobre uma das duas soluções que eram reconhecidas como válidas: a) ou o velho desistia por completo da posse da rapariga, recebendo em troca o equivalente ao total do alembamento, ou b) recebia apenas uma indemnização a estipular, como homem lesado nos seus direitos e propriedade.
O velho considerou a sua provecta idade, que pelo contrário a rapariga era novita, reflectiu e optou pela indemnização, que fixou em duas cabras e duas cabaças de marufo; o “abusador” aceitou o valor proposto, fazendo questão de ressalvar que era necessário descontar o valor do tabaco que cedera à rapariga.
E amigos como dantes …
Por estas e outras parecidas, o misisonário residente, simpático ansião holandês, de que não me ocorre o nome, bem tentava anunciar a força dos sacramentos, o ideal de casamento monogâmico e outros, mas parecia que o rebanho, neste particular, aspirava mais  aos ensinamentos do Corão.
(1) -  Henrique Galvão tem obra escrita sobre a vida nas colónias africanas, a sua antropologia e zoologia, designadamente Outras Terras e Outras Gentes, A Ronda de África , Antropófagos e Terras do Feitiço 
Azevedo

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