2012-08-01

M37 - EU ESTAVA LÁ!...

Rua António Maria Cardoso, Lisboa, uma noite de Fevereiro de 1974.
Nesta rua fica a sede da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), o CNC, (Centro Nacional de Cultura) e o Teatro S. Luiz, entre muitas outras instituições. As instituições aqui apresentadas são tão díspares e antagónicas: a PIDE defende a manutenção e a defesa do Estado Novo, o CNC e o Teatro S. Luís a elevação cultural do homem ao nível de um ser pensante.
Estou aqui, nesta rua, à porta do CNC, sem bilhete para entrar, assim como todos os outros meus camaradas para assistir a um concerto do Zeca. Não é preciso bilhete para ver o Zeca, somos todos convidados; quando as portas se abrem lá vamos nós numa enorme alegria e comunhão de ideais fraternos; somos uma família sem nos conhecermos.
A noite é fria, é uma noite de inverno, cai uma chuva miudinha que se entranha nos ossos, mas como somos novos, tudo aguentamos, os ânimos estão ansiosos e agitados – não é todos os dias que se tem a oportunidade de ver o Zeca. Só há jovens, muitos jovens, mais de uma centena, fala-se em surdina sobre diversos assuntos, sente-se no ar um ambiente que cheira a mudança – junto a mim comenta-se o caso de uma miúda que perdeu um sapato a correr à frente à Polícia de Choque entre o Instituto Superior Técnico e a Praça do Chile há umas semanas atrás depois de uma carga policial. Os que estão sós, como eu, encostam-se pelo muro que está em frente ao Centro, do outro lado da rua, apuramos os ouvidos, ouvimos os últimos acontecimentos culturais, políticos, situação económica do pais, situação da guerra do ultramar. Eu, sempre calado, sou como uma esponja a absorver tudo o que me rodeia; quase há dois anos que não estava em Lisboa, tudo aquilo é novo para mim.
A noite avança devagar, os ânimos a agitam-se, agitam-se cada vez mais, já passa meia hora do previsto para o início do espetáculo, e nada, o tempo passa, passa e o concerto nunca mais começa.
Eis quando alguém chega a uma janela do CNC e anuncia que o espetáculo tinha sido cancelado, sem mais comentários ou explicações.
Foi o bom e o bonito, uma enorme barulheira, bocas e mais bocas revolucionárias, saídas das gargantas enfurecidas, um bater de pés que parece uma trovoada, é um barulho ensurdecedor e a malta toda ali sem arredar pé. Passam dez minutos, meia hora, uma hora e a situação mantém-se exatamente na mesma: “Zeca, Zeca”, “daqui não saímos”; passado algum tempo, eis que aparece a Policia de Choque.
Vem do Largo do Picadeiro, sobe uma pequena rua inclinada que é a Travessa dos Teatros e que vai embocar na Rua António Maria Cardoso, vem a compasso com passada firme e ritmada, a cadência começa a aumentar para depois acabar numa correria desenfreada e desorganizada – parece que vão em velocidade acelerada. A multidão que está em frente à travessa dispersa-se, uma parte vai para a direita para o Largo do Chiado e a outra, a da esquerda, desce a Rua António Maria Cardoso, a caminho da Rua Victor Cordon. A polícia é uma enorme faca que corta de alto a baixo a multidão, dividindo-a em duas partes.
Corpos enormes, bem nutridos, são como os touros enraivecidos da arena do Campo Pequeno, vestidos de negro, com capacetes e coletes protetores e à prova de bala, armados de escudos e de bastões, sem dizerem uma só palavra, começam a distribuir fruta da grossa sem ser pedida, levam tudo à frente, os mais fracos ficam para trás, especialmente as miúdas, ficam enroladas no chão a contorcerem-se com dores, a serem massacradas a pontapé e à bastonada, não há lógica, nem compaixão, é uma situação que só vivida é que dá para entender. A brutalidade impera, e nós só queríamos ver o Zeca.
Há uma multidão em fuga, desvairada e descontrolada à procura de refúgio. A noite é cortada por gritos lancinantes, há cacetada e mais cacetada, há cabeças partidas a sangrar. Alguns dos que descem a Rua António Maria Cardoso, entram no Teatro S. Luiz mesmo sem bilhete numa tentativa de se esconderem dos agressores, tudo isto perante os olhos esbugalhados dos porteiros.
Eu, impávido e estupefacto, fico aqui parado como uma estátua humana em frente à travessa, local onde sempre estive, com a mão direita levantada e com o B. I. Militar na mão, assim fico, não sei se sou tomado pela Polícia por algum bufo, mas ninguém me toca; figuras horrendas e arfantes passam à minha esquerda e à minha direita como relâmpagos fugazes na noite escura. Passados uns momentos estou só, tudo vazio à minha volta, um silêncio sepulcral, quando olho para o lado vejo um miúda deitada no chão a sangrar da cabeça, ajudo a levantá-la e digo-lhe que temos de ir ao hospital, mas a rapariga aos berros grita comigo que não quer ir para o hospital, tem medo de ser presa. Proponho então levá-la a casa do nosso médico de família, um santo homem já maduro que vive ali na Rua S. Bento. Apanhamos um táxi e lá vamos os dois com o taxista. Tocamos à porta, já passa da meia-noite, vem a criada em robe e diz-nos que o senhor doutor está fora num congresso e que não há mais ninguém que nos possa ajudar. Voltamos ao táxi que está à nossa espera, com poucas palavras explicamos ao taxista a situação, então ele diz-nos que conhece um centro de enfermagem que trata bem as pessoas e não quer saber de onde elas vêm ou o que se passou com elas para ali estarem, confiámos no taxista e lá vamos nós. Descemos a Rua de São Bento, fomos ter a uma rua junto à Assembleia da República. Saímos do táxi, perguntamos ao taxista quanto era o seu trabalho, diz-nos que também já foi jovem e que nos compreende muito bem o que nos aconteceu e não quis o pagamento da bandeirada. Fizemos o tratamento no centro de enfermagem: raspagem parcial do couro cabeludo, cozedura do corte com alguns pontos a frio, colocação de uma enorme ligadura branca a envolver toda a cabeça. De seguida fomos até à república universitária onde a jovem vivia e que ficava na Rua da Escola Politécnica em frente à velha Faculdade de Ciências, é estudante do 3.º ano de Matemática, angolana, branca e chama-se Nini Viana, assim o diz. Depois disto encontrámo-nos algumas vezes, para aí uma meia dúzia, ela sempre com um barrete vermelho na cabeça a esconder as ligaduras, falamos de acontecimentos atuais, petiscamos sempre alguma coisa na zona da Fundação Gulbenkian, a zona em que vivia em Lisboa e a sede da minha licença militar. Nunca me deu o seu contato, ela é que me contata sempre e vem ter comigo. Passado para aí umas duas semanas pede-me para levar uma encomenda para Luanda quando eu regressa-se a Angola, para entregar a familiares. Digo-lhe que é impossível, não posso levar mais nada porque já tenho peso a mais com coisas para mim e para alguns camaradas. Parece ficar amuada, sem dizer mais uma palavra, despedimo-nos, nunca, nunca mais vi a Nini.
P. S. - Se a Nini, lê-se agora esta crónica – viveria novamente os acontecimentos trágicos mas solidários daquela longa noite, devia sentir a mesma nostalgia que eu sinto neste momento ao escrevê-la.
Há situações que marcam para sempre a alma de uma pessoa.
Esta é a minha história e a da Nini
Eu estava lá!...

“… O amor tem de haver …
… O amor é a poesia…
… O amor é não haver polícias.”

Poema: O amor – escreveu Inácio da Silva Cruz, 10 anos.
In: “A criança e a vida”, edições ITAU, 1969,
Antologia de Maria Rosa Colaço – Enfermeira, jornalista, professora primária, 1935//2004
1 de agosto de 2012
Ferreira,
ex-furriel miliciano, CCS

2 comentários:

  1. O que à data relia para acreditar e que breve vou desejar de novo aconteça


    Terra, débil lamento
    na temerosa noite.
    Sobre os carrascos, vento,
    desfere o teu açoite.

    Anjo de fogo
    pressinto a tua vinda
    o gládio necessário erguido
    sobre a cidade dominada
    e digo-vos senhores é findo o vosso tempo
    o jogo terminou ainda que não o pareça

    em Pátria Lugar de Exilio de Daniel Filipe

    azevedo

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  2. Eu também gostaria de lá ter estado.
    ... mas o tempo ainda é imutável.

    Disse,
    endovelicus

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