M40 - Uma história de Vida
Nos tempos que correm e quase nos arrastam, paramos para admirar homens
de caracter que se destacam na agora sociedade em que quase vale tudo. Homens
que passam de coluna inteira, que souberam tirar licões de vida dos próprios
erros e que pelo que dizem e praticam são exemplos para os seus e para os
muitos amigos de que se rodeiam e tratam
fraternalmente.Não conheci pessoalmente o A.B. , o que lamento; pisamos o mesmo
terreno quase simultaneamente e tínhamos a mesma especialidede.
Amigo comum fez-me chegar o testemunho escrito e sentido que se segue e
cuja leitura recomendo.
VIDAS
O menino
Tóninho (A. B. em criança), criado num ambiente humilde, sem grandes bens
materiais, teve no entanto uma infância mas com muita alegria e felicidade.
Desde
muito novo, sempre foi amigo do seu amigo, solidário, com grande sensibilidade,
carinhoso e atento.
No
seu crescimento, teve duas fases muito marcantes. A primeira, na adolescência e
principalmente na passagem pela Escola Industrial, altura em que se formou para
a vida e descobriu as primeiras paixões (tão lindas) e fez novas amizades que ainda
hoje se mantem.
A
segunda foi a tropa. Principalmente o tempo da guerra colonial.
Nesse
período da sua vida, não teve só experiências más. Viveu também momentos muito
bons. Conseguiu até no meio daquela confusão, ser feliz. Muito feliz.
A
companhia operacional em que o jovem A.B. era o furriel mecânico, foi colocada
a operar no Leste de Angola, primeiro, por três meses a dar proteção à
construção de uma estrada na zona da Lumbala, junto ao grande rio Zambeze.
Depois
num local fixo chamado Luvuei, onde a principal missão era patrulhar toda uma
vasta região onde existia um importante corredor de infiltração do PPLA e UNITA,
vindos das suas bases sitas na Zâmbia.
A
transição da dita companhia, da Lumbala para o Luvuei, foi feita na época das
chuvas, por uma grande coluna militar e demorou quase três dias a percorrer
cerca de 150 Km, quase sem dormir, sem qualquer higiene pessoal, alimentados
com ração de combate, sujeitos a emboscadas e a minas que encontrámos e nos
destruíram uma viatura que tivemos de reparar ali e seguir viagem.
Chegados
ao Luvuei, o A.B. vinha na penúltima viatura da coluna pois as regras mandavam
que os mecânicos de serviço iam nessa posição para cobrirem de eventuais
avarias no resto da coluna.
O
Luvuei era um pequeno aglomerado de palhotas situado em terras do fim do mundo
como lhe chamavam na altura, mas onde a tropa tinha de estar por razões
estratégicas. Teria uma população de cerca de mil habitantes indígenas que
procuravam apoio e proteção junto à tropa.
Lembro-me
como se fosse hoje. Ao chegar ao Luvuei, ainda bem de dia, voltando da estrada
principal para o caminho de acesso ao quartel, deparo com um olhar triste e tão
profundo de uma negra tão linda, que me marcou imediatamente.
Juro
que não era meu propósito procurar estas situações, mas aconteceu. Felizmente
aconteceu.
Cheguei
ao quartel, devo ter tomado um banho, devo ter feito a barba, devo ter comido
qualquer coisa, devo ter bebido umas cervejas e devo ter-me deitado num sítio
qualquer a descansar, pois no outro dia tínhamos muito para fazer para render
quem lá estava há mais de um ano.
Passados
dois ou três dias, indo combinar as coisas com uma lavadeira que me indicaram, voltei
a ver a negra linda de olhar triste e
profundo mesmo ali. Era sua irmã.
Passados
cerca de oito dias, estava a viver com ela na sanzala. Numa zona que seria na
altura o epicentro da guerra colonial no Leste de Angola.
Nunca
me senti sequer ameaçado por alguém daquela gente. E se todos sabiamos haver
por ali guerrilheiros infiltrados.
Passei
noites em batuques. Passei noites ao redor de alambiques artesanais de
aguardente de cana e de milho. Convivi com as mais variadas espécies de
pessoas. Fiz naquela zona viagens de duzentos quilómetros sozinho, apenas
acompanhado por indígenas e graças a não sei bem o que, nunca me aconteceu nada
de grave.
Vivi
cerca de catorze meses com aquela negra linda. Linda por fora e linda por
dentro. De seu nome Esperança. Foram catorze meses que fizeram atenuar os
horrores daquela guerra estupida e sem nexo. Foram catorze meses de autêntica
felicidade que dariam um grande romance. Foram catorze meses que devem ter
trazido ao de cima muitos dos meus sentimentos devida às grandes fragilidades
existentes na altura. Eu tinha vinte e poucos anos. Era um jovem pouco mais do
que um menino. Sensível ao que me rodeava. Agarrava-me a tudo o que de bom acontecia
para minimizar o que de mau me era imposto.
Desta
linda e pura relação, naturalmente aconteceu uma gravidez. Ainda mais desejada
pela mãe, pois a cultura daquele povo, muito diferente da nossa, tinha como
desejo da mãe ter muitos filhos que seriam o sustento da sua velhice e é uma
cultura em que o pai pouco importa pois não tem que ser muito presente. É
estranho para nós mas era assim e vai ser assim por muito mais tempo.
Qual
o jovem que em 1974, com 22 ou 23 anos, naquele ambiente, a viver com alguém
naquela cultura, se iria preocupar com anticoncecionais, preservativos ou
outras coisas do género?
O
meu filho deveria nascer por volta do fim do ano de 1974 e eu queria vê-lo a todo
o custo. Então já em Luanda, em finais de Dezembro, tive dez dias de licença e
resolvi cometer uma inconsciência de todo o tamanho. Rumei ao Leste (1.700 Km)
já com Angola em guerra civil (viajem que daria outro romance) para ver se o
meu filho já teria nascido. Para o ver. Para o conhecer.
Com
algum custo, lá consegui chegar, mas ele ainda não tinha nascido. Tive de
regressar a Luanda dentro dos dez dias que tinha, sob o risco de ser
considerado desertor. Do Luvuei ao Luso viajei numa coluna dos guerrilheiros da
UNITA e dali a Luanda noutras boleias que nem me lembro.
Normalmente,
acabei a comissão e regressei a casa para junto dos meus pais, em Abril de
1975.
Desde
essa data que no meu coração se abriu uma ferida. Todos os dias pensava como
estaria aquela gente, principalmente o meu filho.
Entretanto
casei em 76, tivemos duas filhas por sinal, gémeas e temos sido felizes. Eu
quase, pois faltava-me algo para ser totalmente feliz.
Esta
dor era só minha, este tormento solitário durou 37 anos.
Durante
a guerra civil de Angola era inteiramente impossível procurar lá alguém, para
mais na zona onde o conflito foi mais intenso.
Depois
da morte de Jonas Savimbi, precisamente na zona nascente do rio Luvuei, veio a
paz tão merecida para aquele pais e para aquele povo.
A
partir daí comecei a procurar por vários meios, saber qualquer coisa sobre a
minha família de lá. Foram tentativas e mais tentativas. Umas vezes com mais
esperança, outras com muito desânimo. Mas nunca desisti.
Já
no ano de 2012, por intermédio desta modernice do FB, fiz-me amigo dum ex
companheiro da escola industrial que tal como eu, é agente técnico de
arquitetura e engenharia e trabalha há anos em Angola.
Conversa
puxa conversa, contei-lhe a minha história e ele disse-me que como ia fazer uma
obra de requalificação da estrada que passa pelo Luvuei, se iria interessar
pelo meu caso.
Sinceramente
que nuca dei nada pelo que ele me disse. Descobrir uma pessoa de que nem sabia
o nome, nascido num local totalmente arrasado pela guerra civil sem dados praticamente
nenhuns, era como descobrir uma pequena agulha num enorme palheiro.
Já
tinha havido pessoas a trabalhar naquela zona e teriam feito diligências neste
sentido, que me diziam que aquelas pessoas ou teriam sido simplesmente
abatidas, ou ter-se iam refugiado num qualquer campo de refugiados na Zâmbia.
A
situação não se previa de resolução nada fácil.
Mas
a minha esperança nunca esmoreceu. Com dias piores e outros melhores.
Acontece
que mesmo sem acreditar em nada de divino, aconteceu aquilo a que os crentes
chamam de milagre.
O
nosso amigo Caçador, chegou ao local, pôs o esquema dele a trabalhar e consegui
encontrar o meu filho.
Parece
fácil, não parece? Como é que ele conseguiu, ainda não sei, porque ele ainda
não me explicou. Mas que conseguiu, conseguiu.
Agora,
calculem os meus amigos como é que eu fiquei. Estive mais de uma semana sem
saber o que fazer e o que pensar. Parecia-me estar a sonhar. Fiquei tão feliz
que não conseguia adjetivos para exprimir o que me ia no cérebro.
Acontece
que tinha de dizer o que se passava à minha família de cá. E a mais próxima é a
mais sensível a estas coisas, chama-se Isabel e é a minha esposa. Foi a mulher
que escolhi para minha companheira para o resto da minha vida.
E
ela sabia de tudo o que eu tinha vivido no Luvuei, menos a parte da gravidez e
do nascimento duma criança.
O
resto da família mais ou menos sabia, muito embora isto nunca fosse muito
comentado, até devido à pouca probabilidade de um dia se encontrar a pessoa em
causa.
Agora
encontrou-se e eu tive de ter uma longa e melindrosa conversa com a minha
Isabel. A reação foi naturalmente complicada. Ela percebeu a minha alegria e acaba
por compreender uma situação resultante duma relação antes de termos qualquer
compromisso. Não houve traição.
Ela
custou-lhe muito, foi não ser conhecedora da situação quando outras pessoas o
eram.
Errei
por pensar estar a protegê-la. Errei e assumo. Errei e peço-lhe muitas
desculpas.
Agora
quero gerir esta situação com muita sabedoria. Quero dar tempo para acalmar os
ânimos por cá, mas não vejo a hora de lá ir e abraçar o meu filho.
Já
tenho uma fotografia dele, que segundo a minha família se parece bastante
comigo. Já falámos por telefone. Já chorámos por telefone. Falta chorarmos com
um forte abraço.
A
mãe dele já morreu. Ele tem dois filhos e duas filhas, dos seis meses aos doze
anos. (dum dia para o outro tinha um neto e passei a ter cinco). Foi militar na
guerra civil de Angola. Atualmente é sargento no corpo de polícia de intervenção
rápida (Ninjas). Chama-se J. P. B., porque a mãe fez questão de lhe dar o meu
nome. A todos os seus filhos deu o nome de B (nota edit: o apelido do pai),
mesmo nunca pensando que um dia nos iriamos encontrar. Os seus chefes deram-lhe
todo o apoio e louvaram muito a minha atitude, por não ser uma atitude muito
comum. Vive na cidade de Luena (ex Luso) e neste momento está deslocado a 260
Km a Norte, numa outra cidade chamada Saurimo a dar formação a novos polícias.
Muito
mais poderia aqui dizer, mas penso já ter ajudado os meus amigos a entenderem
melhor o que tenho dito no FB.
Vou
mandar este documento por e-mail aos amigos que de alguma forma se interrogaram
e se preocuparam comigo.
Obrigado
pela vossa paciência e pelo vosso apoio. Acreditem que tem sido muito
importante.
E
um grande mas mesmo grande e especial obrigado ao nosso amigo Caçador.
A. B.