Lamego, 2.º semestre de 1971
O Centro de Instrução de Operações Especiais (CIOE), foi
criado no ano de 1960, com o objetivo de:
-
Instruir quadros do exército nas várias
modalidades de operações especiais;
-
Realizar estágios de subunidades, tendo em vista
aperfeiçoar a sua atuação numa ou mais modalidades destas operações;
-
Levar a efeito estudos que, de qualquer modo,
possam contribuir para melhorar a eficiência das Forças Armadas, no que diz
respeito à sua atuação em operações especiais designadamente nas de maior
interesse para a defesa do território nacional.
Ficou aquartelado na cidade de Lamego, no antigo Convento de
Santa Cruz.
Durante a guerra colonial mantem-se o curso de operações especiais:
até 1968, frequentado por aspirantes e cabos milicianos (depois promovidos a alferes
e a furriéis milicianos), como especialidade complementar; a partir do início
de 1968, por instruendos do COM e do CSM, como especialidade base,
primeiramente durante o 2º ciclo, depois nos dois ciclos.
A instrução privilegiou o conhecimento de técnicas de
infiltração profunda, orientação, ocultação e sobrevivência, constando dos programas
a preparação psicológica, a gestão de esforço fisico (capacidade de resistência
a esforços violentos em condições adversas, fadiga, sobressalto, etc.), o manuseamento de explosivos, a travessia de
cursos de água, o planeamento tático, a gestão de patrulhas de longo alcance, emboscadas,
golpes de mão.
Ou seja, no que interessava, criaram-se especialistas em contra-guerrilha, em ação psicológica sobre as populações e em operações de
reconhecimento de vários locais estratégicos, podendo posteriormente
realizar-se ou não ações de guerra.
O CIOE foi extinto em 31 julho de 1975.
Em Fevereiro de 1981 foi reativado, recebendo então
complementarmente a missão de preparar forças de Operações Especiais, de grande
grau prontidão, autonomia e intervenção.
Em Julho de 2006 o CIOE passou a designar-se Centro de
Tropas de Operações Especiais (CTOE) e a integrar a Brigada de Reacção Rápida.
O petit nom de RANGER decorre do facto de em 1962 o Estado
Maior do Exército (EME), ter nomeado o Cap. Art. Bacelar Begonha para
frequentar, na América do Norte, o Curso “Ranger”, com o fim de promover em
Portugal um curso idêntico, naturalmente adaptado aos teatros de operações africanos;
este curso vai ser dado no CIOE.
Depois do laboratório de Argélia, começava a ser dada
preferencia à experiência dos miltares no Vietname: uma instrução/formação militar
de operações especiais, tipo ranger (muito provavelmente a formação de Ranger
Training, de Fort Benning, na Georgia). Daqui deriva a designação de Ranger que
passam a assumir como sua, os militares que conquistam a placa de especialista
de Operações Especiais.
Funcionou até ao fim da Guerra Colonial, ficando conhecido
pelo nome de “Curso dos Rangers”.
Um dia da vida
instrutiva do “Ranger”:
O instruendo não tem hora certa para descansar; é forçado a levantar-se
a qualquer hora da noite: às vinte e duas, à meia-noite, às duas, às quatro ou
às seis da manhã, tem de estar sempre disponível.Não há clarim para tocar a alvorada; o som metálico é
sempre, mas sempre, substituído pelo estrondo de granadas ofensivas que rebentam à frente das casernas, passados dois minutos tem de estar na parada, formado com o seu grupo de combate, geralmente em camisola branca, calça de camuflado e
bota a condizer; de seguida são feitas suspensões nas barras fixas, que estão mais à frente na parada estrategicamente montadas.
Este exercício tem a finalidade de despertar/estimular os
formandos e de fazer alongamentos musculares (esperguiçar); é o início da
preparação física diária. De seguida vai tomar o pequeno-almoço, este é livre e
sem formalismos, com a alimentação sempre à descrição: pão, fiambre, queijo,
manteiga, leite e café, e cada qual come o que quer e bebe do que mais gosta. A
alimentação é muito boa, em quantidade sempre sobrante, e muito variada (diz-se
que a Nato ajuda a pagar a nossa alimentação). O problema é que há muitas
refeições que são passadas em branco; quando saímos em patrulha é certo e
sabido, não levamos quase nada para comer, levamos uma sandes, uma peça de
fruta e nada mais, depois temos de nos desenrascar. A população civil é
calorosa, afável e solidária, dá tudo o que tem: enormes pães de centeio, que
parecem rodas de carros, chouriços, queijo, presunto, vinho e aguardente. Uma
vez, na Régua, pelas sete horas da manhã, um padeiro que andava a distribuir o
pão pelos cafés que por essa altura começavam a abrir, deu um saco dos da
farinha cheio de carcaças para os homens que iam comigo; foram logo devoradas
ali, assim sem mais nada, depois de uma noite intensa de exercícios nas margens
do rio Douro. Nunca soube se este padeiro recebeu algum dinheiro pelo pão, mas valha
a verdade era hábito o comandante mandar pagar todos os danos causados pelos
instruendos, designadamente trigo ou centeio pisados, culturas hortícolas danificadas.
Não é permitido ao instruendo levar dinheiro para as patrulhas, faz parte do
conceito permanente de sobrevivência
pura. Comi muito pão dado pelos aldeões da zona, castanhas que apanhava do chão
debaixo dos castanheiros, restos de fruta que ficavam penduradas nas árvores
depois da apanha (estamos no fim do outono).
As refeições são tomadas no único refeitório que temos; o comandante,
os oficiais, os sargentos, e os instruendos, comem todos aqui. Há mesas
pequenas para oito os instruendos e uma grande mesa – presidencial – no extremo
poente do refeitório; é uma mesa de oito por um metros, onde se sentam o
comandante, os oficiais e os sargentos, bem como o instruendo de dia que tem um
lugar cativo.
Quando algum instruendo faz anos, há sempre um enorme bolo oferecido
pela companhia, e que é colocado sobre a mesa presidencial, tendo o
aniversariante de o partir e distribuir por todos os presentes, depois de se
cantarem os parabéns.
Temos uma formação muito objetiva, com muitos tipos de armas,
incluindo as do inimigo, todo o tipo de materiais de guerra e equipamentos
militares. Os instruendos têm de saber desmontar e montar a sua G3, com os
olhos vendados. A montagem e desmontagem de armadilhas ocupam também muito do
nosso tempo. Aulas práticas, são dadas num terrapleno em que só podem estar
dois formandos de cada vez e adjacente a este há uma parede vertical de
proteção com cerca de um metro de altura. Antes do início desta formação é
feito um aviso solene de que é para aí que se salta quando alguma coisa corre
mal.
Tive conhecimento de que num dos cursos seguintes ao meu, o
nosso instrutor de minas e armadilhas – um alferes da Academia Militar - tinha
morrido a tentar safar um dos instruendos numa destas aulas.
Toda a nossa formação assenta numa responsabilização e
formação muito elevada para a guerra, aqui não há lavagem ao cérebro, trata-se sim
de testar e ensinar os limites do corpo e da mente humana. Nos fins-de-semana de
ida a casa, se alguma coisa correr mal ou formos apanhados pela Polícia Militar
(PM), ou por qualquer graduado, temos de imediato ou logo que chegamos ao
destacamento, de apresentar um relatório circunstanciado, que o comandante mais
tarde vai comparar com o auto da participação, estando o instruendo sempre presente;
se tudo estiver conforme, o auto de participação é sempre rasgada pelo
comandante e segue para o cesto dos papéis.
Nunca sabemos quando vamos dormir, aqui tudo é mudança e não
há lógica temporal. Nunca sabemos quando vamos de fim-de-semana, pode ser à
quarta-feira ou ao sábado, para estarmos no domingo à noite no destacamento.
Pode não haver fins-de-semana seguidos para gozar. Podemos ir à cidade de
Lamego, sair e entrar à civil, isto apenas nos fins-de-semana livres; há
viaturas com hora sempre marcada para nos levar e trazer.
Lamego é uma cidade cativante
mas pacata: tem a sede do CIOE, a Messe dos Oficiais e dos Sargentos, uma catedral
com o seu museu adjacente, que eu visitei, onde há tapeçarias e quadros em
madeira de arte sacra muito antigas, nomeadamente pela mão de Grão Vasco, muitas
igrejas, o santuário de Nossa Senhora dos Remédios, que é uma pérola da
arquitetura barroca, estatuária granítica sublime, um vetusto castelo, um
tribunal, várias escolas e entre elas um liceu, bancos, correios, um cinema
onde as senhoras não se inibem de levar cobertores para se agasalharem nas
noites frias de inverno, um bom café – O
Café Central – com um mezanino mais elevado, de onde os militares miram as meninas sentadas cá
em baixo, um lar de raparigas pobres que os militares rondam, sedentos de
esperanças, uma central de autocarros que esgotamos nos fins de semana em que
estamos livres, um comércio antigo mas muito personalizado. Há ainda bonitos e
muito bem tratados jardins públicos.
O curso é muito personalizado, sempre virado para o
individuo, há um esforço de criação de grandes especialistas que depois serão
integrados em companhias operacionais,
O plano de curso tem diversas provas, sendo as mais difíceis
ou para alguns as mais temidas:
– O Fantasma;
– O Calvário;
– Prisioneiros de
Guerra;
- A Dureza 11;
- As 24 horas de
Lamego.
Breve descrição do
que foram as principais provas:
– Fantasma:
Esta é uma prova fácil, mas requer muito controlo emocional,
durante todo o percurso, de cerca de oito quilómetros.
A noite não tem luar, lá fora a escuridão é quase total, e
até as luzes da cidade de Lamego morrem à míngua. Todos os instruendos estão
sentados no refeitório, a aguardar serem chamados. De cinco em cinco minutos sai um
militar, somos cronometrados como se fossemos fazer uma prova de atletismo. Quando
saímos, é-nos entregue um papel, com instruções para nos dirigirmos à porta de
armas, que dista cerca de duas centenas de metros do local onde estamos. À
porta de armas espera-nos um instrutor que nos informa que temos de seguir pela
estrada que dá acesso à cidade. Passados uns dois quilómetros, mais ou menos em
frente das Caves da Raposeira, salta-nos à frente outro instrutor. Obriga-nos a
entrar numa conduta de águas pluviais que atravessa sob a estrada, e cujo chão está repleto de tripas
e de restos de animais que trouxeram de um qualquer matadouro. Temos de o percorrer a rastejar, sobre esta imundície, de onde emana um cheiro pestilento
e nauseabundo. São oito ou nove metros repugnantes e asfixiantes. Já à saida, o mesmo instrutor informa-nos que temos de continuar a
descer a estrada até à cidade. Lá sigo em corrida acelerada, que o declive da
estrada ajuda. Logo à entrada da cidade surge um terceiro instrutor que me encaminha
para o cemitério. Passado uma centena de metros chego ao portão que está
encerrado, mas logo surge um outro instrutor que determina que entre por escalada e
que siga sempre em frente, em passo de corrida até ao portão oposto, que também
é para galgar, virar à direita e sempre em frente até destacamento.
Reinicio a minha prova, subir, descer, correr … e surge-me
pela frente um fantasma de carne e osso com um cobertor branco enfiado na
cabeça, como se fora um poncho, finto-o a correr; penso ter-me livrado do
dissabor, mas não, logo à frente tropeço numa corda esticada que atravessa a
alameda de lado a lado, caio, e a arma que ia às costas faz um barulho tremendo,
de acordar os mortos. Sou agarrado pelos pés e pelos braços por alguns fantasmas
que surgem do nada, para me arrastarem e depositarem em cima de uma campa de
pedra que está tão gelada como a noite. Fico ali deitado uns cinco a dez
minutos, em que sistematicamente, ora perguntam ora afirmam que tenho medo;
digo que não, insistindo sempre que tenho muito frio, enquanto que tento
resistir ao crescer de vómitos involuntários originado pelo cheiro nauseabundo
que já se entranhou na roupa, passou à pele.
Insistem e mantenho-me firme, enquanto ouço outros camaradas
em corrida, a tropeçar com grandes estardalhaços; finalmente deixam-me retomar
a prova, reinicio a corrida mas agora com renovadas cautelas.
Pouco depois, da escuridão da noite surgem duas luvas brancas
esvoaçantes que me tentam atingir, lá me consigo esquivar, corro para o segundo
portão, subo-o, viro à direita e sigo para o quartel, onde termino a prova
cronometrada. No outro dia soube que o standart da nossa estadia no cemitério passava pela paragem
sobre algumas campas ou … pela entrada e permanência dentro de um jazigo tipo capela.
A porta deste era fechada à chave, logo que o instruendo entrava; quando os instrutores
não ouviam os gritos dos vivos-mortos, duas interpretações eram
permitidas: ou o instruendo era um valente e estava calado ou … tinha
desmaiado. O tempo que gastei e a classificação que tive, nunca chegaram ao meu conhecimento.
Esta é a essência da Prova Fantasma.
Nunca me pareceu justificável esta profanação do cemitério, nem
o direito que assiste ao comando militar que o permite, tão pouco conheço a
prática actual; certo que ao tempo o poder civil, militar e da igreja andavam
de mãos dadas.
– O Calvário:
É uma prova diurna. Há alguns tipos de equipamentos que têm
de ser transportados à mão, entre dois locais distanciados de oito a dez
quilómetros.
O equipamento, a sortear pelos instruendos, tem um peso
unitário da ordem dos 20 kg e compreende bolas grandes (talvez cheias com
terra), rolos de arame farpado e cruzes latinas em madeira, com cerca de três
metros. A mim calha-me um rolo de arame farpado. Lá começa a prova: tiro a
camisa, enrolo-a e coloco-a em cima do ombro a fazer de almofada, peço a um
camarada para me ajudar a colocar o rolo de arame farpado às costas e lá sigo.
Nas descidas atiro o rolo de arame ao chão e vou-o guiando
conforme posso, recorrendo, no possivel, à técnica do arco com roda da minha infância.
Despois segue-se a alternância com o rolo às costas e o atirar
ao chão para rolar, determinada pelo declive do terreno até que, exausto e muito dorido, ultrapasso a linha de chegada
Pior para os camaradas que têm de transportar as bolas:
devagar e desageitadamente no plano e nas subidas, tais que mulheres muito
grávidas, e desesperados nas descidas em que as bolas são rainhas de velocidade,
que eles por desistir de controlar.
Os homens das cruzes serão os mais penalizados no arrastar das
peças; a partir de metade do percurso, assemelham-se a senhores dos paços
do alcatrão..
Chegámos ao local previsto para a concentração, cada qual com
a sua peça, que finalmente será definitivamente largada. São depositadas, para pouco depois serem carregadas nos camiões que nos trazem para a unidade.
Assim termina a operação, que à imagem recorrente dos
camaradas q\ue transportam as cruzes, é um autêntico calvário.
Embora contando para classificação individual, esta prova
sendo diurna, facilita o despertar sentimentos de interajuda; como tive
oportunidade de constatar, ao longo de todo o percurso: há instruendos que se agrupam para
efeito de incitamento psicológico de camaradas mais desanimados ou mesmo para
transportar peças ou equipamentos que eles já não conseguem arrastar.
Ao longo do caminho ajudamos sempre o companheiro que está
em dificuldade, é uma regra fundamental que se respeita aqui na formação e que
vigora em todas as operações; a classificação, sendo importante para efeito da
posterior colocação, face a esta regra, é sempre desvalorizada.
– Prisioneiros de guerra:
É uma prova individual de tortura psicológica. A noite está
a começar, estamos todos preparados para sair do destacamento. Os olhos estão vendados
e as mãos atadas atrás das costas. Brevemente as Berliets carregadas de
soldados arrancam para uma serra desconhecida onde nos vão largar. Vão dar
voltas e mais voltas para baralhar a nossa orientação. Lá vamos aos solavancos,
seguramente por estradões de terra batida. Decorridas cerca de duas horas paramos,
um militar é colocado fora da viatura, arrancamos e andamos mais um pouco,
outro é deixado para trás, ... outro, mais outro, ainda mais outro, não sei
quantos, já lhe perdi o conto. Chega a minha vez, sou deixado num caminho de mato,
com os olhos vendados, as mãos atadas e deitado no chão. Tento
levantar-me, consigo ficar de pé, mas súbito cambaleante, vou embater numas pedras que estão ali ao
lado, tento tirar as amarras, não consigo, tento encontrar uma pedra para
cortar o baraço que me ata as mãos, passado algum tempo lá consigo cortar o fio,
tiro a venda dos olhos, ponho-me à escuta. No silêncio da noite, ouço de vez em
quando um camarada a chamar, sigo no sentido do chamamento e vou desatando os
meus camaradas. Depois, já muitos, começamos a percorrer o estradão na direção
dos apelos que ainda se ouvem, encontramos mais colegas amarrados, desatamos as
cordas, por fim parece-me que estão todos desamarrados. Agora a missão é cada
um a correr para o quartel. Pelo crepúsculo das luzes da cidade de Lamego consigo
estabelecer uma aproximação do local
onde estou, apronto-me para regressar.
Não houve instruções em contrário, portanto vigora a regra máxima
de todas as provas: não podemos circular pelas estradas nem ser apanhados pelos
instrutores; há sempre viaturas na estrada à nossa procura, se formos apanhados
voltamos ao início da prova.
Felizmente as viaturas militares fazem muito barulho, conhecemo-las
pelo trabalhar do motor e pela forma; quando as
ouvíamos ou víamos fugíamos para dentro do mato, como coelhos.
Por fim lá chegámos ao quartel, a mesa está posta,
mas não há vontade de comer, só tomar banho e ir para a cama, enquanto alguns
camaradas ainda vão chegando.
– A dureza 11:
Estamos quase no final da nossa preparação; alguém alerta
para o facto de na identificação da prova figurar o numero da semana do curso, … mas logo de seguida recordo-me das lições de
mineralogia e começo a ficar preocupado,
porque “dureza 11” significa que passamos ou vamos passar além do máximo da Escala (de
dureza) de Mohs. De facto, são quatro dias dramáticos. É uma prova de
resistência e de dureza; de resistência à fome, à sede, ao sono e ao frio; de
dureza pelos exercícios que nela decorrem. É um tempo sem lógica para nós, onde
tudo nos espera e tudo pode acontecer: dormimos uma, duas horas por noite. Podemos
almoçar só pão com café ou comer batatas cozidas com bacalhau, às três da manhã.
A alimentação é muito pouca, temos como suplemento possivel galinhas que
cacarejam assustadas, na gaiola ali memso ao lado; podemos mata-las e comê-las
como entendermos, assadas, cruas, com penas, sem penas. Vi colegas meus a
comerem nacos de carne de galinha crua. Eu prefiro as castanhas e a fruta como
suplemento alimentar. Há sempre exercícios com balas reais na câmara, prontas a
partir de rajada ou tiro a tiro, com a arma apontada ou com a arma encostada à
anca, contra alvos de papel, onde a pontuação é anotada. Por isso, fiquei algo surpreendido
quando cheguei a Viana de Castelo, à semana de campo, com os exercícios a serem
dados com bala simulada, quando estávamos a poucos dias de embarcar para Angola;
terá pesado o facto de ter saido de Lamego directamente para o IAO do batalhão.
Montamos e desmontamos armas mesmo durante a noite, fazemos e desfazemos armadilhas.
Fazemos patrulhas, assaltos simulados, com dezenas de metros a rastejar ou a
correr e com queda na máscara e tiro imediato. Os quatro dias são passados
nisto, um frenesim inebriante, que a todos toca, mesmo aos instrutores que também
andam num rodopio. A resistência física é
elevada somos capazes de andar uma tarde inteira sempre em corrida, com passada certa.
A fome? Um dia inteiro sem comer. Estamos a ficar robots pensantes. Mas o fim
do curso aproxima-se e começamos a sentir uma sensação de alívio, pese embora o
facto de terem ficado para trás camaradas que provavelmente não voltaremos a
ver e com os quais criámos laços de amizade como se fossem irmãos de sangue.
Ao quarto dia regressámos ao destacamento onde uma outra
grande surpresa nos espera.
– As 24 horas de Lamego:
No dia em que tinha terminado a Dureza 11, chegados ao destacamento
deu para tomar um magnifico banho e posteriormente saciar o apetite com um
jantar com todos.
Quando esperavamos poder sair e avançar para um merecido repouso,
fomos obrigados a ver um western; já não
me lembro do enredo, mas o título – O homem que matou Billy the Kid - ficou-me para
sempre na memória. O filme é projetado no refeitório e são muitos os colegas
que adormecem nas cadeiras, alguns acordam ao som dos tiros, outros porque
cairam ao chão, mas ainda há os que caiem e continuam a dormir. Filme
terminado e tudo em marcha rápida para lençóis … que quase não chegam a aquecer porque, menos de uma hora decorrida, o sono é interrompido ao som das granadas.
E já todos na parada, fomos informados de que se vai ter
lugar uma nova prova: as vinte e quatro
horas de Lamego. É uma prova de conjunto, que numa fase mais avançada passa a ser de avaliação de equipas de cinco instruendos. Preparo o meu equipamento, como o tempo
está de chuva resolvo levar o meu poncho, que pesa cerca de um quilo. Saímos do
destacamento a pé, seguimos pela estrada nacional que liga Penude a Castro
Daire, de um e outro lados, distribuidos em duas filas indianas. Começo a ver camaradas que literalmente dormem enquanto
caminham, cambaleiam, andam aos ziguezagues; outros mais resistentes e mais
atentos na proximidade, agarram-nos pelo braço e puxam-nos para dentro da estrada, ou noutros
casos lateralizam-nos e ajudam-nos a caminhar no ritmo de sono superficial. Passámos por Sucres,
Candal, Matanchinha, Magueijinha, Bigorne e chegámos ao Colo do Pito. São
dezoito quilómetros penosos que levam horas a percorrer. A manhã está a nascer.
São formados grupos de cinco elementos, tomo a chefia de um grupo, entregam-me uma bussola, uma Carta Militar à escala 1/25 000, e instruções escritas com azimutes definidos, que permitem identificar pontos notáveis que
temos de atingir sequencialmente.
É também dado a cada instruendo uma sandes e uma peça de fruta, para
as vinte e quatro horas da prova. O primeiro objetivo é atingir o cume da Serra
de Santa Helena, uma enorme montanha rochosa. O percurso é sempre a direito, dista
cerca de três quilómetros do Colo do Pito. Há diversas provas a realizar na
serra, andamos sempre à corta mato. Num conmtrolo, sou informado de que a minha
equipa tem cerca de duas horas de avanço relativamente ao tempo previsto, mas
num dos últimos percursos engano-me, perdemos muito tempo, desmoralizamos. Chegamos a Tarouca ao princípio da noite, a
população dá-nos maçãs e pão e nós sem dinheiro para pagar. Ainda faltam
dezoito quilómetros por estrada ou dez a corta mato para chegar a Penude. Começa
a chover, a noite fica negra como breu e o frio aperta. Um elemento do meu
grupo oferece-me cinco mil escudos pelo meu poncho, quando eu ganhava como
desenhador de construção civil dois contos e meio por mês; mas o poncho não sai
dos meus ombros. Abrigo os quatro soldados do meu grupo debaixo de um alpendre,
nas traseiras de uma casa que me parece abandonada. Salto para a estrada faço sinais
paragem a todas as camionetas que seguem na direção a Lamego. Umas param outras
não e das que pararam nenhuma ia para Lamego.Finalmente aparece uma que vai
para a cidade, e consigo convencer o condutor a dar-nos boleia.
É uma velha camioneta de caixa aberta, para onde subimos; ninguém vai na cabina, porque podemos ser vistos pela ronda que
patrulha as estradas. Passados dez minutos vi a coisa mais inacreditável da
minha vida: homens deitados a dormir em cima de uma camioneta com a chuva a
cair-lhes em cima e que deslizavam pela caixa ao ritmo de cada curva, embalados
num sono profundo. Sem mais problemas lá chegámos ao destacamento ainda dentro
do prazo das vinte e quatro horas. Houve colegas que demoraram quase dois dias
a fazer o mesmo percurso, teriam dormido nalgum palheiro? Nunca o soube. No
destacamento apesar da mesa, como sempre, estar posta à nossa espera, não comi nada. Tomei um banho quente e fui
dormir, sem tempo contado, e foi o resto daquela noite, o dia seguinte e a
noite que lhe seguiu. Esta foi a prova mais dura que realizei em Lamego, sofri
mais neste dia do que nos vinte e sete meses de guerra que passei em Angola.
As histórias paralelas a esta narrativa ficaram por contar, é
possível que um dia aqui as retome, mas o texto já vai longo e a
memória começa a ser apagada pelo tempo, já lá vão mais de quarenta anos sobre
estes acontecimentos e o tempo não perdoa.
Estas memórias já deviam ter passado a memória futura há
muito, quando ainda estavam frescas, mas só agora é que surgiu a oportunidade e
vontade de o fazer.
Apetecia dizer que estou no sortilégio do Fernão Mendes
Pinto, que esperou pela idade madura para verter em Peregrinação o
multifacetado das suas aventuras e desventuras.
Escasseia-me a arte e engenho de um Fernão Lopes, para
reportar como desejava a realidade nua e crua, real, objetiva e concreta.
Sinto-me tão condicionado quanto Milos Forman, no seu
Amadeus, me parece conseguiu de forma sublime, sugerir que estaria psicologicamente Mozart
enquanto escrevia a sua última obra, o Requiem, uma missa fúnebre, sob forte influência da morte do pai e na convicção de que seria para o seu próprio funeral: não come, não bebe, não dorme, não pára.
Há dois dias que ando nisto, escrevo, rescrevo, vou à
frente, volto atrás, só penso nisto; são vinte e três horas do dia vinte e seis
de julho de dois mil e doze e eu aqui agarrado a esta coisa que não mais me
larga.
Para que a memória não se apague aqui fica o meu testemunho.
26 de julho de 2012
Ferreira,
ex-furriel miliciano, CCS