Lucusse, uma manhã de dezembro de 1972
Uma Berliet está pronta para avançar para o Luso, com o Pel. Rec., comandado pelo alferes miliciano Amaral, o homem do cigarrito embutido na boquilha com a sua tosse traqueana.
A partida será imediatamente
após a tomada do pequeno-almoço com a missão de levantar a correspondência
oficial e particular no Quartel-general. Hoje no nosso quartel vai haver
alegria e tristeza com a chegada do correio; alegria com as boas notícias
vindas do Puto, tristeza com as más e também a do rosto daqueles que não
recebem qualquer aerograma.
A viagem iniciada, segue-se pela
nova estrada de alcatrão, negra, plana, lisa como uma folha de papel; é uma
enorme serpente ondulante que mancha a paisagem esverdeante, atravessando ribeiros
e pequenos rios, quimbos onde miúdos seminus correm loucos na vã tentativa de
acompanharem nossa velocidade estonteante. Há uma alegria imensa quando nos vêm
passar, como é possível que alguns anos mais tarde estejamos em campos de
batalha opostos a tentarmo-nos matar? A mente humana é insondável, como diz
António Damásio no seu livro O Erro de Descartes. Às vezes alguns miúdos têm
sorte – um bocado de pão voa até ao alto para cair no chão poeirento, uma luta
titânica surge de imediato pela conquista daquele naco do tamanho da palma de
uma mão. O que interessa para alguns é o espetáculo, para outros é a tentativa
de matar a fome. Mas … temos pressa de chegar, o motor da viatura está no seu máximo
do seu rendimento, mas a velocidade não ultrapassa os 60 km/h, apesar de ser uma
máquina quase nova.
Passado cerca de uma hora e
meia chegámos ao Luso, sem qualquer problema, como é habitual.
De imediato é feita uma
escala de serviço, para a guarda da viatura e das armas que nela ficam
depositadas. Alguns camaradas têm algum tempo livre para desintoxicar pela
cidade. É uma bela cidade, quase plana, implantada num grande planalto, com edifícios
públicos e privados majestosos, alamedas largas e bem arborizadas, executada em
esquadria perfeita, feita a régua e compasso. Faz lembrar as cidades projetadas
e executadas pelo Marquês de Pombal – a baixa pombalina de Lisboa, esta com
outra densidade habitacional e Vila Real de Santo António no Algarve. É servida
pela linha do comboio que liga o Lobito à Zâmbia com uma enorme gare coberta,
tem o Quartel-general – a sede de todas as decisões militares - vários
quarteis, um campo de aviação militar, o casão militar, piscina pública, um
grande cinema, hospital, tribunal, campo de futebol, o liceu Marcelo Caetano,
comércio, todo o tipo de comércio. Por ali passa o tráfico da Kamanga, é um
negócio fabuloso que rende milhões, a quem se mete nele. Sente-se que há muito
dinheiro em movimento. Vive-se bem.
O furriel Ferreira é um
daqueles que vai dar uma volta pela cidade, possivelmente visitar o Casão
Militar para fazer algumas compras.
Mas …
Qual não é o seu espanto
quando vê surgir ao longe, uma figura que lhe parece familiar. Com um baque no
coração, acelera o passo na sua direção, quase que corre, agora o coração bate
ainda mais forte, a figura torna-se cada vez mais nítida e é mesmo uma pessoa
da sua família. É o Manel da Conceição, um “velhote” na casa dos cinquenta
anos, primo direito da sua mãe. Agarram-se um ao outro como dois namorados, num
abraço que parece eterno. Pergunto ao Manel o que anda a fazer naquelas terras tão
distantes da sua casa, ele responde-me que está a fazer uma visita natalícia ao
seu filho Augusto, que é Comissário de Justiça, na Policia do Luso e que já não
vê há muitos anos. Eu sabia que após cumprir o serviço militar, o Augusto tinha
ficado em Angola, mas não fazia ideia que estava na cidade do Luso – e eu ali
tão perto. Pergunto como está a nossa família, e ele lá me vai explicando ponto
por ponto tudo o que tem acontecido. Anoto o posto e as funções do Augusto na
Polícia e prometo visitá-lo na próxima vez que venha à cidade. Mando saudações
para os meus pais, irmãos e restante família, despeço-me do Manel com um abraço
fraterno. E lá parto eu para a Berliet que a hora combinada de partida
aproxima-se.
Levo no coração uma alegria imensa
de ter encontrado aquele familiar e a cabeça a perguntar como é possível duas
pessoas encontrarem-se a mais de seis mil e quinhentos de distância num
determinado local, a uma determinada hora e para mais numa zona e tempo de
guerra, onde as coisas não ocorrem normalmente.
Gostava de saber, entrando com
muitos fatores – quantidade de pessoas no mundo, a área da terra e o tempo,
quais são as probabilidades de um acontecimento deste voltar a ocorrer. Passaria
eu o resto da vida a fazer contas? É uma coisa que ainda me martela a
cabeça!...
Será que já me saiu a
lotaria sem ter jogado?
P. S.- Passado algum tempo,
visitei o meu primo Augusto na esquadra da Polícia, ofereci-lhe algumas
garrafas de vinho do Porto e outras coisas vindas do Casão, coisas que ele não
tinha acesso. Voltei ainda para me despedir dele quando fui para o Luquembo; o
Augusto regressou à Metrópole após a independia de Angola, deixou a polícia para
sempre e dedicou-se à agricultura e à pecuária nas terras do pai que entretanto
morreu. Visito-o uma ou duas vezes por ano, e recordamos alguns momentos
passados, naquela cidade tão bela e distante.
“Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura…”
ext. do poema Em todas as ruas te encontro, de Pena Capital, Mário
Cesariny (pintor e poeta surrealista, 1923-2006)
16 de julho de 2012
Ferreira,
ex-furriel miliciano, CCS
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