Lamego, 1.º semestre de 1972,
Lucusse, 2.º semestre de 1972 // 1.º semestre de 1973.
A sorte protege os audazes … e os outros também, digo eu.
Que me perdoe o grande poeta romano, Virgílio (70 // 19 a. C.), o autor
da ENEIDA e deste verso, dito pela boca de Turno, rei do Lácio; passados vinte
séculos os Comandos, militares portugueses, vão busca-lo para seu lema. Será
que era um incentivo à guerra? Agora é!...
Logicamente nunca compreendi esta frase, não será que a sorte protege
toda a gente? A sorte, é a sorte, e nada tem a ver com os audazes / cobardes, ricos
/ pobres, bonitos / feios, novos / velhos.
A prova disso pode ser testemunhada aqui, através de três episódios que
se passaram comigo durante a minha passagem pelas forças armadas, os não
audazes também têm sorte, digo.
--- Quando ainda estava em Lamego, antes de chegar RAP 2, dei juntamente
com um alferes miliciano ranger instrução a um pelotão da 36.ª Companhia de
Comandos, que despois seguiu para Angola. A instrução correu sempre dentro da
normalidade, mas podia ter corrido muito mal. Numa das instruções noturnas, o pelotão
que nos está distribuído tem de percorrer um determinado percurso, sempre a pé:
tem de ir de um ponto e chegar a outro completamente definido numa carta
militar que lhe foi entregue, este percurso é um curso de água permanente, é
expressamente proibido qualquer militar sair do ribeiro. Mas um “chico esperto”
resolve sair do “trilho” e passar numa zona mais elevada adjacente ao ribeiro
para não circular dentro da água. Teve uma sorte tremenda porque na altura estávamos
a mudar a fita das balas da metralhadora, quando olhamos em frente e vimos um
volto que caminha sobre a ravina, ficamos a tremer, se não tivéssemos reparado
e começado a disparar imediatamente ele tinha tombado para o outro da lomba.
Estamos sós, eu e um soldado, dei ordem imediata para não se disparar nem mais
um tiro durante aquela noite. O militar lá seguiu na sua calma e sem a água
pelas canelas. A metralhadora estava montada numa plataforma metálica, não
permitia disparar para baixo, só num plano horizontal e para cima, já era uma
proteção de segurança para os instruendos. Ao longo do percurso estavam
montadas mais três metralhadoras que com os seus tiros rasantes faziam amouxar
os instruendos que caminhavam dentro do ribeiro. Havia ainda o rebentamento de
alguns petardos de Trotil, umas barras amarelas de quilo que eram detonados à
distância com um explosor, eram depositados estrategicamente dentro de pequenos
poços de água, que quando rebentavam levantavam dezenas de quilos de água e de
lama num espetáculo único. Neste dia, a sorte protegeu o nosso homem. Nunca
soube quem ele era.
--- Numa das nossas circundações pedestres e noturnas ao quartel do
Lucusse, prémios dados ao nosso alferes Amaral pelas suas bocas aos seus
superiores, prémios estes que ele depois repartia amigavelmente pelo seu
pelotão, algo de estranho se passou comigo que passo a contar:
Logo no início da noite, depois do jantar, saímos do quartel já com o
itinerário completamente definido, tínhamos um percurso a percorrer e uma
paragem de poucas horas para descansar e finalmente o regresso ao quartel, pelo
alvorecer. Lá fomos nós com todos os apetrechos necessários e suficientes para
este tipo de operação, espingarda na mão, balas na arma e nas cartucheiras,
granadas ao peito, cantil com água para quando a sede aperta, um saco cama e
tenda para pernoitar. Seguimos em fila indiana, com a visibilidade suficiente
para se ver o camarada que vai à nossa frente. Percorremos alguns trilhos,
caminhámos também a corta mato, atravessamos alguns ribeiros. A perceção que
hoje tenho é que circundámos o nosso quartel num raio entre os dois e os três
quilómetros. Passadas umas duas a três horas de caminhada parámos para preparar
uma zona de descanso e de dormida. Escolhemos um local protegido, bem
dissimulado com uma abundante vegetação, onde era difícil sermos identificados
pelo inimigo. Colocámos um fio que cerca toda a zona, agarrado a este uma
granada defensiva, que em caso do fio ser forçado ou arrastado a cavilha salta
e a granada explode. Montámos no interior do recinto as pequenas tendas, foram
escalados alguns soldados para a guarda do acampado, de seguida enfiamo-nos
dentro dos sacos de dormir e lá tentámos dormir. Passado cerca de uma meia hora
a granada explode, gera-se o pânico no pelotão, os soldados vigilantes disparam
as suas G3 para qualquer local exterior ao acampamento até os carregadores
estarem completamente vazios. O mais estranho é que só houve o explodir da
granada e os tiros das nossas G3. Pelo que entendi da situação, não havia
inimigo … ou este estava calado? Por isso continuo dentro da tenda sem me chatear
e sem me levantar. A ordem é posta, o sossego volta a reinar. O Amaral resolve
passar ali toda a noite, de manhã, quando nos levantamos, fomos fazer a
inspeção ao local, foi encontrado algum sangue, mas pouco, possivelmente proveniente
de algum animal ferido pela explosão da granada ou talvez pelos tiros dos nossos
atiradores. Lá regressámos ao quartel alguns com a barriga das pernas a tremer.
Não senti medo, nem pânico; como não fui visto no alvoroço surgido não
sei se se aperceberam da minha falta, ou se me tomaram por cobarde, também
ninguém me questionou. Já estava imunizado com tantas situações idênticas quando
passei por Lamego. Mas se foi mesmo o inimigo? Aí podia ter tido muita sorte!...
--- A terceira situação é a mais simples e a mais grave de todas:
Um técnico da Tecnil – a empresa que construía na altura a estrada que ia
ligar o Luso a Gago Coutinho – chega ao nosso quartel, pede ao nosso comandante
para alguém lhe proteger uma buldózer de lagartas que ficou avariada junto aos
trabalhos que estavam a realizar e que não podia ser movida. Uma parte do Pel.
Rec., a minha secção, é destacada para fazer a proteção à referida máquina. Fomos
num Unimog que também ficou connosco; passado uma meia hora chegámos ao local
já no início da noite. Fiz uma escala de serviço para a segurança dos
equipamentos e também da nossa própria segurança, o primeiro soldado de vigia
sobe para cima da buldózer, senta-se no banco do manobrador, passado algum
tempo adormece, dorme um santo sono até de madrugada. E nós ali no chão em
tendas tão frágeis de lona também a dormir, a dormir sem pesadelos. Ainda hoje
penso na sorte que tivemos, com tantos animais selvagens à caça e não sermos
caçados. Creio que não fomos identificados pelos animais caçadores por causa do
cheiro nauseabundo proveniente de óleo queimado e do gasóleo da buldózer que se
sobrepunha ao nosso odor corporal. Creio que este foi o maior perigo que passei
na guerra.
A sorte protege os audazes … e os outros também, digo eu.
… “Audaces fortuna juvat.”- Traduções: Audazes a fortuna favorece, A
sorte protege os audazes. Verso n.º 284, Canto X, ENEIDA.
Autor: Públio VIRGÍLIO Maronis, poeta romano, 70 //19 a.C.
20 de julho de 2012
Ferreira,
Ex-furriel miliciano, CCS
Escreves cada vez melhor. É um gosto ler-te. Desconhecia essa tua faceta, Parabéns !
ResponderEliminarDelta
Delta???
EliminarSó conheço o café!
Andas disfarçado/a?
Escreve também alguma coisa, que os temas estão a esgotar.
jose ferreira
atenção: delta ... 50% ... pode ter a ver com o Norris
ResponderEliminarazevedo
Caro AZEVEDO:
ResponderEliminar"Prometi, não voltar a este Blog,
mas vou quebrar o meu juramento -
a um Deus tudo é permitido".
O nosso grande Camões começa a sua epopeia os Lusíadas inspirando-se nos versos iniciais da Eneida, como se demonstra a seguir:
- Arma virunque cano, Troiae qui primus ab oris
Italiam, fato profugus, Laviniaque venit ...
- As armas dos barões eu canto, que das costas de Troia
para Itália, pelo fado exilados, a Lavínia vieram ...
- As armas e os barões assinalados
que da ocidental praia Lusitana ...
(As duas primeiras estrofes são da Eneida, a sua tradução para português e as duas estrofes iniciais de os Lusíadas).
Aqui fica um complemento ao texto escrito, que é de bastante qualidade.
Leiam a Eneida que é um livro admirável, mas não deixem de ler a Odisseia de Homero e já agora os nossos Lusíadas, deste último há edições anotadas que nos introduzem plenamente no desenrolar da acção.
Parabens ao Blog, aqui há coisas que merecem ser lidas.
Tenho pena de não dar a "cara", mas a minha cara é muito feia, é de pedra, robusta e austera, podem ver-me no Museu Nacional de Arqueologia; antigamente com entrada livre aos domingos da parte da manhã, agora não sei, porque os meus ouvidos ensurdeceram com 2000 anos de vida e já não ouço nada.
Disse,
endovelicus
Caro endovelicus:
EliminarÉ uma alegria enorme ver-te novamente entre nós.
Não sei quem és, mas para mim isso não é importante, é importante sim, como dizia o poeta cantante:
"Seja bem vindo que vier por bem" ...
Creio que es uma pessoa de bem.
Com um espírito tão arguto e sabedor não daria para escreveres umas coisas?
Um abraço pétreo,
José Ferreira
No Crato, de passagem, sempre a recordar terra mater de Endovelicus
ResponderEliminarTinha na ideia que a Odisseia teve mais peso nos Lusiadas que a história do Eneias; no inicio do seculo (2003) encontrei uma excelente tradução de Frederico Lourenço d Odisseia
Já agora … para os que não quiserem ir até a.C., proponho coisa especial: Desiderius Erasmus
Como sempre a considera-lo Endovelicus, de alma insubmissa
azevedo
Caro AZEVEDO:
ResponderEliminarÀ minha frente está Desiderius Erasmus numa soberba gravura de Albert Durer.
"O Elogio da Loucura"?
É só o princípio de um conjunto de obras que entram na minha mente delirante: O Elogio da Loucura de Erasmus de Roterdão; A Utopia de Thomas More, que perdeu a cabeça por ordem do Henrique VIII; Assim falava Zaratustra de Frederico Nietzsche, que morreu louco ou o Despertar dos Mágicos de Jaccques Bergier. Todas elas já me passaram pelas mãos, fazem parte de mim e eu delas.
Salvo melhor opinião, já pareço um advogado a escrever, A Odisseia de Homero e a Eneida de Virgílio cantam entre outras coisas as aventuras de dois guerreiros solitários - Ulisses e Eneias. Os Lusíadas são uma coisa diferente, contam a história de um povo que é o nosso.
Só quiz dizer que a introdução da Eneida e dos Lusíadas são semelhantes, não mais do que isto.
Camões de certo que leu a Eneida; deve ter lido tudo o que havia no seu tempo, pelo menos a sua bagagem cultural assim o diz.
Ah!... Também gosto muito do poema guerreiro de Gilgamesh.
Muito da nossa civilização judaico-cristã começou na Suméria, a quem os bárbaros ianques do século XXI deram mais uma machadada.
E a Grécia e Roma? Também somos filhos deles.
Quando era estudante do liceu tirei 19,60 valores em 20,00 possíveis, isto na disciplina de História em exame a nível nacional, pois na altura era estudante do ensino particular.
Como gosto de história, filosofia, literatura ...
É um prazer enorme estar aqui.
Só pretendo avivar o sangue à malta.
Disse,
endovelicus