2012-12-03

M40 - Uma história de Vida

Nos tempos que correm e quase nos arrastam, paramos para admirar homens de caracter que se destacam na agora sociedade em que quase vale tudo. Homens que passam de coluna inteira, que souberam tirar licões de vida dos próprios erros e que pelo que dizem e praticam são exemplos para os seus e para os muitos amigos de que se rodeiam  e tratam fraternalmente.Não conheci pessoalmente o A.B. , o que lamento; pisamos o mesmo terreno quase simultaneamente e tínhamos a mesma especialidede.
Amigo comum fez-me chegar o testemunho escrito e sentido que se segue e cuja leitura recomendo.

VIDAS

O menino Tóninho (A. B. em criança), criado num ambiente humilde, sem grandes bens materiais, teve no entanto uma infância mas com muita alegria e felicidade.
Desde muito novo, sempre foi amigo do seu amigo, solidário, com grande sensibilidade, carinhoso e atento.
No seu crescimento, teve duas fases muito marcantes. A primeira, na adolescência e principalmente na passagem pela Escola Industrial, altura em que se formou para a vida e descobriu as primeiras paixões (tão lindas) e fez novas amizades que ainda hoje se mantem.
A segunda foi a tropa. Principalmente o tempo da guerra colonial.
Nesse período da sua vida, não teve só experiências más. Viveu também momentos muito bons. Conseguiu até no meio daquela confusão, ser feliz. Muito feliz.
A companhia operacional em que o jovem A.B. era o furriel mecânico, foi colocada a operar no Leste de Angola, primeiro, por três meses a dar proteção à construção de uma estrada na zona da Lumbala, junto ao grande rio Zambeze.
Depois num local fixo chamado Luvuei, onde a principal missão era patrulhar toda uma vasta região onde existia um importante corredor de infiltração do PPLA e UNITA, vindos das suas bases sitas na Zâmbia.
A transição da dita companhia, da Lumbala para o Luvuei, foi feita na época das chuvas, por uma grande coluna militar e demorou quase três dias a percorrer cerca de 150 Km, quase sem dormir, sem qualquer higiene pessoal, alimentados com ração de combate, sujeitos a emboscadas e a minas que encontrámos e nos destruíram uma viatura que tivemos de reparar ali e seguir viagem.
Chegados ao Luvuei, o A.B. vinha na penúltima viatura da coluna pois as regras mandavam que os mecânicos de serviço iam nessa posição para cobrirem de eventuais avarias no resto da coluna.
O Luvuei era um pequeno aglomerado de palhotas situado em terras do fim do mundo como lhe chamavam na altura, mas onde a tropa tinha de estar por razões estratégicas. Teria uma população de cerca de mil habitantes indígenas que procuravam apoio e proteção junto à tropa.
Lembro-me como se fosse hoje. Ao chegar ao Luvuei, ainda bem de dia, voltando da estrada principal para o caminho de acesso ao quartel, deparo com um olhar triste e tão profundo de uma negra tão linda, que me marcou imediatamente.
Juro que não era meu propósito procurar estas situações, mas aconteceu. Felizmente aconteceu.
Cheguei ao quartel, devo ter tomado um banho, devo ter feito a barba, devo ter comido qualquer coisa, devo ter bebido umas cervejas e devo ter-me deitado num sítio qualquer a descansar, pois no outro dia tínhamos muito para fazer para render quem lá estava há mais de um ano.
Passados dois ou três dias, indo combinar as coisas com uma lavadeira que me indicaram, voltei a ver a negra linda  de olhar triste e profundo mesmo ali. Era sua irmã.
Passados cerca de oito dias, estava a viver com ela na sanzala. Numa zona que seria na altura o epicentro da guerra colonial no Leste de Angola.
Nunca me senti sequer ameaçado por alguém daquela gente. E se todos sabiamos haver por ali guerrilheiros infiltrados.
Passei noites em batuques. Passei noites ao redor de alambiques artesanais de aguardente de cana e de milho. Convivi com as mais variadas espécies de pessoas. Fiz naquela zona viagens de duzentos quilómetros sozinho, apenas acompanhado por indígenas e graças a não sei bem o que, nunca me aconteceu nada de grave.
Vivi cerca de catorze meses com aquela negra linda. Linda por fora e linda por dentro. De seu nome Esperança. Foram catorze meses que fizeram atenuar os horrores daquela guerra estupida e sem nexo. Foram catorze meses de autêntica felicidade que dariam um grande romance. Foram catorze meses que devem ter trazido ao de cima muitos dos meus sentimentos devida às grandes fragilidades existentes na altura. Eu tinha vinte e poucos anos. Era um jovem pouco mais do que um menino. Sensível ao que me rodeava. Agarrava-me a tudo o que de bom acontecia para minimizar o que de mau me era imposto.
Desta linda e pura relação, naturalmente aconteceu uma gravidez. Ainda mais desejada pela mãe, pois a cultura daquele povo, muito diferente da nossa, tinha como desejo da mãe ter muitos filhos que seriam o sustento da sua velhice e é uma cultura em que o pai pouco importa pois não tem que ser muito presente. É estranho para nós mas era assim e vai ser assim por muito mais tempo.
Qual o jovem que em 1974, com 22 ou 23 anos, naquele ambiente, a viver com alguém naquela cultura, se iria preocupar com anticoncecionais, preservativos ou outras coisas do género?
O meu filho deveria nascer por volta do fim do ano de 1974 e eu queria vê-lo a todo o custo. Então já em Luanda, em finais de Dezembro, tive dez dias de licença e resolvi cometer uma inconsciência de todo o tamanho. Rumei ao Leste (1.700 Km) já com Angola em guerra civil (viajem que daria outro romance) para ver se o meu filho já teria nascido. Para o ver. Para o conhecer.
Com algum custo, lá consegui chegar, mas ele ainda não tinha nascido. Tive de regressar a Luanda dentro dos dez dias que tinha, sob o risco de ser considerado desertor. Do Luvuei ao Luso viajei numa coluna dos guerrilheiros da UNITA e dali a Luanda noutras boleias que nem me lembro.
Normalmente, acabei a comissão e regressei a casa para junto dos meus pais, em Abril de 1975.
Desde essa data que no meu coração se abriu uma ferida. Todos os dias pensava como estaria aquela gente, principalmente o meu filho.
Entretanto casei em 76, tivemos duas filhas por sinal, gémeas e temos sido felizes. Eu quase, pois faltava-me algo para ser totalmente feliz.
Esta dor era só minha, este tormento solitário durou 37 anos.
Durante a guerra civil de Angola era inteiramente impossível procurar lá alguém, para mais na zona onde o conflito foi mais intenso.
Depois da morte de Jonas Savimbi, precisamente na zona nascente do rio Luvuei, veio a paz tão merecida para aquele pais e para aquele povo.
A partir daí comecei a procurar por vários meios, saber qualquer coisa sobre a minha família de lá. Foram tentativas e mais tentativas. Umas vezes com mais esperança, outras com muito desânimo. Mas nunca desisti.
Já no ano de 2012, por intermédio desta modernice do FB, fiz-me amigo dum ex companheiro da escola industrial que tal como eu, é agente técnico de arquitetura e engenharia e trabalha há anos em Angola.
Conversa puxa conversa, contei-lhe a minha história e ele disse-me que como ia fazer uma obra de requalificação da estrada que passa pelo Luvuei, se iria interessar pelo meu caso.
Sinceramente que nuca dei nada pelo que ele me disse. Descobrir uma pessoa de que nem sabia o nome, nascido num local totalmente arrasado pela guerra civil sem dados praticamente nenhuns, era como descobrir uma pequena agulha num enorme palheiro.
Já tinha havido pessoas a trabalhar naquela zona e teriam feito diligências neste sentido, que me diziam que aquelas pessoas ou teriam sido simplesmente abatidas, ou ter-se iam refugiado num qualquer campo de refugiados na Zâmbia.
A situação não se previa de resolução nada fácil.
Mas a minha esperança nunca esmoreceu. Com dias piores e outros melhores.
Acontece que mesmo sem acreditar em nada de divino, aconteceu aquilo a que os crentes chamam de milagre.
O nosso amigo Caçador, chegou ao local, pôs o esquema dele a trabalhar e consegui encontrar o meu filho.
Parece fácil, não parece? Como é que ele conseguiu, ainda não sei, porque ele ainda não me explicou. Mas que conseguiu, conseguiu.
Agora, calculem os meus amigos como é que eu fiquei. Estive mais de uma semana sem saber o que fazer e o que pensar. Parecia-me estar a sonhar. Fiquei tão feliz que não conseguia adjetivos para exprimir o que me ia no cérebro.
Acontece que tinha de dizer o que se passava à minha família de cá. E a mais próxima é a mais sensível a estas coisas, chama-se Isabel e é a minha esposa. Foi a mulher que escolhi para minha companheira para o resto da minha vida.
E ela sabia de tudo o que eu tinha vivido no Luvuei, menos a parte da gravidez e do nascimento duma criança.
O resto da família mais ou menos sabia, muito embora isto nunca fosse muito comentado, até devido à pouca probabilidade de um dia se encontrar a pessoa em causa.
Agora encontrou-se e eu tive de ter uma longa e melindrosa conversa com a minha Isabel. A reação foi naturalmente complicada. Ela percebeu a minha alegria e acaba por compreender uma situação resultante duma relação antes de termos qualquer compromisso. Não houve traição.
Ela custou-lhe muito, foi não ser conhecedora da situação quando outras pessoas o eram.
Errei por pensar estar a protegê-la. Errei e assumo. Errei e peço-lhe muitas desculpas.
Agora quero gerir esta situação com muita sabedoria. Quero dar tempo para acalmar os ânimos por cá, mas não vejo a hora de lá ir e abraçar o meu filho.
Já tenho uma fotografia dele, que segundo a minha família se parece bastante comigo. Já falámos por telefone. Já chorámos por telefone. Falta chorarmos com um forte abraço.
A mãe dele já morreu. Ele tem dois filhos e duas filhas, dos seis meses aos doze anos. (dum dia para o outro tinha um neto e passei a ter cinco). Foi militar na guerra civil de Angola. Atualmente é sargento no corpo de polícia de intervenção rápida (Ninjas). Chama-se J. P. B., porque a mãe fez questão de lhe dar o meu nome. A todos os seus filhos deu o nome de B (nota edit: o apelido do pai), mesmo nunca pensando que um dia nos iriamos encontrar. Os seus chefes deram-lhe todo o apoio e louvaram muito a minha atitude, por não ser uma atitude muito comum. Vive na cidade de Luena (ex Luso) e neste momento está deslocado a 260 Km a Norte, numa outra cidade chamada Saurimo a dar formação a novos polícias.
Muito mais poderia aqui dizer, mas penso já ter ajudado os meus amigos a entenderem melhor o que tenho dito no FB.
Vou mandar este documento por e-mail aos amigos que de alguma forma se interrogaram e se preocuparam comigo.
Obrigado pela vossa paciência e pelo vosso apoio. Acreditem que tem sido muito importante.
E um grande mas mesmo grande e especial obrigado ao nosso amigo Caçador.
   
A. B.



2 comentários:

  1. Uma grande lição de vida.

    ResponderEliminar
  2. Uma grande lição de vida, sem dúvida!!!! E muitos outros terão "estórias" similares, mas que preferem esquecer bem no fundo da sua consciência, "enterrando" esse período da vida como se nunca tivesse existido. Bem ou mal feito ? Cada cabeça, sua sentença e aí será cada um a fazer a sua análise, o seu exame de consciência, o exame de vida....
    Um abraço grande para quem por cá vai "aparecendo".
    Feio

    ResponderEliminar