2013-09-04

M52 - Soldado A.M.V.

Conheci o soldado V. em circunstâncias peculiares.  Numa tarde solarenta de Mai72, calhou deslocar-me ao quartel de Gaia (ex-RAP2) e à passagem em frente à casa da guarda, o sargento informou-me que tinha sido presente e estava ali detido, um militar que seguiria para Angola, integrado numa das companhias operacionais do Batalhão.
A pedido, foi-me facultado  o aceso ao aposento em que se encontrava o prisioneiro. Deparou-se-me um homem magro, olhar escavado num rosto de pedra, marcado como só a vida noturna e desregrada consegue. Permanece sentado na borda do catre, o que não me preocupa já que se me figura que se se levantasse me ganhava em altura, para além do que o espaço é acanhado; responde à saudação de forma distante e volta a afivelar um olhar duro e desconfiado de animal acossado. Recuo um pouco, na direcção de uma pequena mesa, em que vou apoiar-me e ensaio um diálogo com perguntas de circunstância: se está bem, se tem dormido, se precisa de alguma coisa. Vai respondendo … de quando em quando deixava pairar uma réstea de confidência, uma verdade escondida ou sofrida. Concluo que o V. tinha pertencido  a uma espécie de quadrilha que operava na zona do grande Porto. Cometeu ilícitos vários que motivaram a perseguição e a detenção pela PSP. Presente a tribunal para julgamento e detectado a situação de desertor, passa para a alçada da policia militar e acaba ainda castigado com pena acessória de embarque para zona operacional, na R.M.A.
Tinha decorrido quase uma hora; saí com uma despedida singela, de um até breve.
Mas, muita água passou sob as pontes do Lungué Bungo antes de voltamos a cruzar caminhos
O V. estava integrado na 3540, e nas duas primeiras vezes que por lá passei não deu para o rever. Homem habituado a uma vida dita de marginal, com manifesta capacidade de liderança, não se adaptou ao regime disciplinar que lhe era imposto.
Não surprendeu os que conheciam alguns dos antecedentes do V. que, a breve trecho, estivesse envolvido em conflitos graves.
E também rapidamente foi transferido para a C.C.S.
Não me cabe escalpelizar motivos e justificações subjacentes, até porque não domino essa informação.
Certo é que para os padrões da CCS, o V., passou a ser o super operacional. Andava mais tempo com a G3, que sem ela; e garantiam que com bala na câmara. Também eram mais os dias (e noites) que passava no mato, que aqueles em que era visto no quartel. Isto com o beneplácito do capitão  AA, que não era pessoa para confrontos directos; neste particular, funcionava o laissez faire, laissez passer.
O código ético a que muitas das acções do V. se subordinavam, se bem que rudimentar,  não deixava de ser interessante. E, quando o respeitavam, ele retribuia em igual; e por esses mesmos, quando considerava necessário, assumia a defesa incondicional.
Recordo dois episódios
Decorria uma madrugada algo agitada, com o ultimar de uma coluna que ia lançar um bigrupo de catangueses, para os lados do Lunhamege. O Sol ainda tardava. Tinha acabado de limpar os vidros dos faróis e começava a acomodar-me ao volante da Berliet que seguiria na frente. Vejo com alguma surpresa surgir o Cap. AA que me vem dizer que V. estava autorizado para mais uma caçada e seguia no meu carro … e lá vem ele. com a G3 na esquerda, e o  cinturão regulamentar de través pelo peso dos carregadores; sauda e sobe para a caixa.
Coluna a rolar, faltavam cerca de 6 quilómetros para se atingir a segunda ponte (uma das referências na ordem de marcha), quando o pressinto atrás do meu banco e ouço a pedir confirmação de eu estar informado de que ele ia à caça; acrescenta que tencionava iniciar a batida a partir dali.
Não expresso qualquer reserva e começo a explicar-lhe que não devo estar de regresso, antes que decorridos 1h30m. Ele deveria estar atento aos dois sinais sonoros que por essa ocasião emitiria, com intervalos de 15 minutos, para estar próximo e se apresentar à boleia: o primeiro  à chegada e o segundo ao retomar a marcha para o quartel.
De facto a passagem de regresso aconteceu quase duas horas depois, e verificou-se o que era expectado: o V. não estava nem apareceu no termo dos quinze minutos subsequentes, que tinha estabelecido como limite; assim, motores a trabalhar, e retomamos os trilhos na areia.
Três noites decorridas, seriam cerca das 06h00m, estou de conversa junto à porta de armas, com a sentinela e o sargento da guarda, quando o primeiro alerta para a aproximação de desconhecido; pouco segundos decorridos é unânime  opinião de que vem lá o V.. Parece mais magro que o habitual, traz no rosto noites naturalmente  mal dormidas. Chega, saúda e  leva a mão ao cinto de onde retira uma das quatro galinhas do mato pendentes, que me oferece.
Não posso aceitar e afavelmente afirmo-lhe não apreciar carne por ser mais dura e o animal abatido, merece melhor destino, que era o da partilha com o pessoal da caserna; “amigos como dantes”, diz, já de partida.
O segundo episódio que recordo ocorreu no início do almoço, no refeitório dos praças, no Lucusse, porventura no último dia que aconteceu ali estar de oficial de dia.
O arroz não saiu a preceito e o pessoal começou num crescente de protesto contra a qualidade da refeição e a incompetência dos cozinheiros. Súbito o T. (soldado condutor) porventura  convencido de que lhe cabia ser o bobo de serviço e introduzir mais dinâmica  na reclamação, levanta-se, pega numa travessa e com um movimento amplo, arremessa o conteúdo em direcção ao teto. O ruído diminuiu significativamente, os mais próximos estão admirados, ora olhando para o teto, onde continua colado o arroz, ora fitando-me.
Não posso facilitar, entre despoletar a aplicação das regras disciplinares, o que não me agrada muito e devolvê-lo à posição de sentado com um valente cachaço, opto pela segunda; vai ser de esquerda cheia, começo a avançar, quando vejo o  V. levantar-se e dirige num vozeirão ao T: “parece que queres ir lamber o arroz lá para cima…” . Silêncio sepulcral no refeitório.  O T. senta-se, reduzido a nada; passo pelo V. e toco-lhe no ombro, também para o motivar a sentar-se; dois passos depois, fito-o por cima do ombro e  dirijo-lhe um impercetivel aceno com a cabeça. Pareceu-me ter sorrido.  
Azevedo


3 comentários:

  1. Boa tarde, amigo Azevedo. Só já depois de ler este artigo li o mail que me enviaste e ao qual não respondi !!! Fui de férias e não mexi nos computadores. Ou seja, foram férias "totais". Gostei muito do que li, aliás gosto sempre!!!! Quanto ao "amigo Vale" o que será feito dele ? Por onde andará ? Lembro-me dalgumas "historietas" do Vale, mas nenhuma que chegue aos "calcanhares" do aqui relatado. Uma outra coisa:- Faleceu o Teixeira (Alferes) da 3540. Terá sido um enfarte a acabar-lhe com a "caminhada"... Segundo o Abreu me contou, ter-se-ia reformado há cerca de 2 meses e andava todo entusiasmado !!! Puta de vida !!!
    Um abraço grande e dispõe sempre que queiras.
    Feio

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  2. Caramigo Azevedo. Gostei desta "estória" assim como das anteriores. Não me recordo do Vale, o que é natural por não ser da minha Companhia. Recordo um elemento da CCS, talhante de profissão, natural de bairro típico de Lisboa. Por ter "crescido" para, salvo erro, Cap. A.A., foi punido com prisão. Como a CCS não devia ter prisão, foi transferido para a CART3539 onde era suposto existir um recinto que servia de prisão. Realmente existia tal recinto, devia ter sido construído nos primeiros anos do quartel mas, em 1972/3 estava em ruínas. Resultado, o punido passou os dias de prisão vagueando pelo quartel, possivelmente, dando graças pela punição que lhe proporcionou uns dias de férias.
    Grande abraço.
    Henrique de Jesus

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    1. Penso que te referes ao Armando Antão Lourenço, cuja especialidade era cortador de carnes verdes. Por sinal um desalinhado com a disciplina, mas um óptimo camarada que algumas vezes me arranjou uns bifes para desinfastiar da comida do rancho geral. Não tem aparecido nos encontros, mas gostava de lhe dar um grande abraço.
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