M52 - Soldado A.M.V.
Conheci o soldado V. em
circunstâncias peculiares. Numa tarde solarenta de Mai72, calhou
deslocar-me ao quartel de Gaia (ex-RAP2) e à passagem em frente à casa da
guarda, o sargento informou-me que tinha sido presente e estava ali detido, um
militar que seguiria para Angola, integrado numa das companhias operacionais do
Batalhão.
A pedido, foi-me facultado
o aceso ao aposento em que se encontrava o prisioneiro. Deparou-se-me um
homem magro, olhar escavado num rosto de pedra, marcado como só a vida noturna
e desregrada consegue. Permanece sentado na borda do catre, o que não me
preocupa já que se me figura que se se levantasse me ganhava em altura, para
além do que o espaço é acanhado; responde à saudação de forma distante e volta
a afivelar um olhar duro e desconfiado de animal acossado. Recuo um pouco, na
direcção de uma pequena mesa, em que vou apoiar-me e ensaio um diálogo com
perguntas de circunstância: se está bem, se tem dormido, se precisa de alguma
coisa. Vai respondendo … de quando em quando deixava pairar uma réstea de
confidência, uma verdade escondida ou sofrida. Concluo que o V. tinha
pertencido a uma espécie de quadrilha que operava na zona do grande
Porto. Cometeu ilícitos vários que motivaram a perseguição e a detenção pela
PSP. Presente a tribunal para julgamento e detectado a situação de desertor,
passa para a alçada da policia militar e acaba ainda castigado com pena
acessória de embarque para zona operacional, na R.M.A.
Tinha decorrido quase uma hora;
saí com uma despedida singela, de um até breve.
Mas, muita água passou sob as pontes do Lungué Bungo antes de voltamos a cruzar caminhos
O V. estava integrado na 3540, e
nas duas primeiras vezes que por lá passei não deu para o rever. Homem
habituado a uma vida dita de marginal, com manifesta capacidade de liderança,
não se adaptou ao regime disciplinar que lhe era imposto.
Não surprendeu os que conheciam
alguns dos antecedentes do V. que, a breve trecho, estivesse envolvido em
conflitos graves.
E também rapidamente foi
transferido para a C.C.S.
Não me cabe escalpelizar motivos
e justificações subjacentes, até porque não domino essa informação.
Certo é que para os padrões da
CCS, o V., passou a ser o super operacional. Andava mais tempo com a G3, que
sem ela; e garantiam que com bala na câmara. Também eram mais os dias (e
noites) que passava no mato, que aqueles em que era visto no quartel. Isto com
o beneplácito do capitão AA, que não era pessoa para confrontos directos;
neste particular, funcionava o laissez
faire, laissez passer.
O código ético a que muitas das
acções do V. se subordinavam, se bem que rudimentar, não deixava de ser
interessante. E, quando o respeitavam, ele retribuia em igual; e por esses
mesmos, quando considerava necessário, assumia a defesa incondicional.
Recordo dois episódios
Decorria uma madrugada algo
agitada, com o ultimar de uma coluna que ia lançar um bigrupo de catangueses,
para os lados do Lunhamege. O Sol ainda tardava. Tinha acabado de limpar os
vidros dos faróis e começava a acomodar-me ao volante da Berliet que seguiria
na frente. Vejo com alguma surpresa surgir o Cap. AA que me vem dizer
que V. estava autorizado para mais uma caçada e seguia no meu carro … e lá
vem ele. com a G3 na esquerda, e o cinturão regulamentar de través pelo
peso dos carregadores; sauda e sobe para a caixa.
Coluna a rolar, faltavam cerca de
6 quilómetros para se atingir a segunda ponte (uma das referências na ordem de
marcha), quando o pressinto atrás do meu banco e ouço a pedir confirmação de eu
estar informado de que ele ia à caça; acrescenta que tencionava iniciar a
batida a partir dali.
Não expresso qualquer reserva e
começo a explicar-lhe que não devo estar de regresso, antes que decorridos
1h30m. Ele deveria estar atento aos dois sinais sonoros que por essa ocasião
emitiria, com intervalos de 15 minutos, para estar próximo e se apresentar à
boleia: o primeiro à chegada e o segundo ao retomar a marcha para o
quartel.
De facto a passagem de regresso
aconteceu quase duas horas depois, e verificou-se o que era expectado: o V. não
estava nem apareceu no termo dos quinze minutos subsequentes, que tinha
estabelecido como limite; assim, motores a trabalhar, e retomamos os trilhos na
areia.
Três noites decorridas, seriam
cerca das 06h00m, estou de conversa junto à porta de armas, com a sentinela e o
sargento da guarda, quando o primeiro alerta para a aproximação de
desconhecido; pouco segundos decorridos é unânime opinião de que vem lá o
V.. Parece mais magro que o habitual, traz no rosto noites naturalmente
mal dormidas. Chega, saúda e leva a mão ao cinto de onde retira uma
das quatro galinhas do mato pendentes, que me oferece.
Não posso aceitar e afavelmente
afirmo-lhe não apreciar carne por ser mais dura e o animal abatido, merece
melhor destino, que era o da partilha com o pessoal da caserna; “amigos como
dantes”, diz, já de partida.
O segundo episódio que recordo
ocorreu no início do almoço, no refeitório dos praças, no
Lucusse, porventura no último dia que aconteceu ali estar de oficial de
dia.
O arroz não saiu a preceito e o
pessoal começou num crescente de protesto contra a qualidade da refeição e a
incompetência dos cozinheiros. Súbito o T. (soldado condutor) porventura convencido de que lhe cabia ser o bobo
de serviço e introduzir mais dinâmica na
reclamação, levanta-se, pega numa travessa e com um movimento amplo,
arremessa o conteúdo em direcção ao teto. O ruído
diminuiu significativamente, os mais próximos estão admirados, ora olhando para
o teto, onde continua colado o arroz, ora fitando-me.
Não posso facilitar, entre
despoletar a aplicação das regras disciplinares, o que não me agrada muito e
devolvê-lo à posição de sentado com um valente cachaço, opto pela segunda; vai
ser de esquerda cheia, começo a avançar, quando vejo o V. levantar-se e
dirige num vozeirão ao T: “parece que queres ir lamber o arroz lá para cima…” .
Silêncio sepulcral no refeitório. O T. senta-se, reduzido a nada; passo
pelo V. e toco-lhe no ombro, também para o motivar a sentar-se; dois passos
depois, fito-o por cima do ombro e dirijo-lhe um impercetivel aceno com a
cabeça. Pareceu-me ter sorrido.
Azevedo
Boa tarde, amigo Azevedo. Só já depois de ler este artigo li o mail que me enviaste e ao qual não respondi !!! Fui de férias e não mexi nos computadores. Ou seja, foram férias "totais". Gostei muito do que li, aliás gosto sempre!!!! Quanto ao "amigo Vale" o que será feito dele ? Por onde andará ? Lembro-me dalgumas "historietas" do Vale, mas nenhuma que chegue aos "calcanhares" do aqui relatado. Uma outra coisa:- Faleceu o Teixeira (Alferes) da 3540. Terá sido um enfarte a acabar-lhe com a "caminhada"... Segundo o Abreu me contou, ter-se-ia reformado há cerca de 2 meses e andava todo entusiasmado !!! Puta de vida !!!
ResponderEliminarUm abraço grande e dispõe sempre que queiras.
Feio
Caramigo Azevedo. Gostei desta "estória" assim como das anteriores. Não me recordo do Vale, o que é natural por não ser da minha Companhia. Recordo um elemento da CCS, talhante de profissão, natural de bairro típico de Lisboa. Por ter "crescido" para, salvo erro, Cap. A.A., foi punido com prisão. Como a CCS não devia ter prisão, foi transferido para a CART3539 onde era suposto existir um recinto que servia de prisão. Realmente existia tal recinto, devia ter sido construído nos primeiros anos do quartel mas, em 1972/3 estava em ruínas. Resultado, o punido passou os dias de prisão vagueando pelo quartel, possivelmente, dando graças pela punição que lhe proporcionou uns dias de férias.
ResponderEliminarGrande abraço.
Henrique de Jesus
Penso que te referes ao Armando Antão Lourenço, cuja especialidade era cortador de carnes verdes. Por sinal um desalinhado com a disciplina, mas um óptimo camarada que algumas vezes me arranjou uns bifes para desinfastiar da comida do rancho geral. Não tem aparecido nos encontros, mas gostava de lhe dar um grande abraço.
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