2012-07-09

M29 - Esta noite… sonhei com a guerra!


“Estou aqui, neste local que mal conheço apesar de já terem passado tantos anos. Vou na terceira, quarta, quinta … comissão de guerra. São tantas que já lhe perdi o conto. Sinto-me velho, cansado, o corpo dormente, as pernas pesadas não respondem, estão presas, só o espirito voa, voa, está sempre a voar.
Os meus companheiros já partiram há tanto tempo, mas eu ainda aqui estou. Será que se esqueceram de mim? Porquê?
Os soldados que chegaram há meses não os conheço, não têm rosto; são máscaras do teatro grego, pétreas, alvas, impávidas, inertes, todas iguais; são autómatos mudos, lânguidos, eternamente calados.
O que se passa comigo? Não sei, só sei que estou aqui e o tempo não anda.
Há dois mundos separados por uma enorme barreira de arame farpado: lá fora há vultos, sombras que se confundem com a noite. Crianças de barriga inchada e uma enorme cabeça, são seres disformes, esfomeados, andrajantes; há ainda velhos e velhas esqueléticas e mirradas pela fome, de cabeças rapadas, de pele enrugada pelo tempo, eternamente submissos e serenos.
Não como, não tenho fome, nem sede, nem medo, sou um vegetal pensante. O tempo é um eterno presente, não me consigo lembrar do passado e o futuro nunca, nunca chega.
Quando é que este sofrimento vai acabar?
Porque se esqueceram de mim? Que fiz eu para não ter ido com os meus camaradas? Porque fui abandonado?
Já não tenho alma, nem vontade de viver, só o cérebro fervilha, não há dia, nem noite, só o decorrer lânguido do tempo.
Um enorme manto de nevoeiro, uma penumbra sempre presente, cobre-me e protege-me de tudo o que me rodeia. Estou no interior de uma clareira protetora, aqui dentro há e conforto mas lá lá fora não sei como as coisas decorrem.
Aqui as caras continuam sempre iguais, dia após dia, semana após semana, mês após mês, são peças de uma máquina enferrujada e parada no tempo.
Não tenho medo de morrer, estou em paz comigo e com as sombras que me rodeiam, há uma paz sempre presente.
Se aqui continuar também serei um autómato? Passarei um dia a ter um rosto de pedra, como os meus colegas?  
Não quero ser um robot como eles, quero continuar a ser eu, um ser pensante, apesar de já não ter corpo e só ter alma.
Só penso numa coisa: PORQUE SE ESQUECERAM DE MIM?” 
- Este sonho ou outro muito idêntico assalta-me duas três vezes por ano, há uma nostalgia sempre presente e um tempo eternamente parado.
“É preferível vencer o inimigo pela fome do que pelas armas…” (A Arte da Guerra” de Nicolo Maquiavel (1469-1527))
(era o que se pretendia com a guerra do Ultramar?)
14 de Junho de 2012
Ferreira
ex-furriel miliciano, CCS

2 comentários:

  1. Verdade e consequência. Para além da elegância da escrita, a que nos está a habituar e da coragem da exposição de um tema eminentemente pessoal, fica seguro exemplo que pode ser seguido por muitos de nós. Refletir serenamente e de espirito aberto, sobre experiências vividas durante ou depois do SMO, podendo ou não dar à escrita essa(s) mesmas experiência. Para além de ajudar a arrumar memórias, é designadamente seguro antidoto para situações como a do quadro de alteração de consciência (no sono) descrito.
    Aproveito a oportunidade para relevar uma recomendação da Psi Susana Oliveira, referenciada na M20 deste blog
    “ACORDAR O EX-COMBATENTE QUANDO ELE ESTÁ A TER UM PESADELO?”
    “Por vezes é aflitivo ver o ex-combatente inquieto, aos sobressaltos ou a gritar enquanto está a ter um pesadelo com a guerra. É comum as esposas acordarem os seus maridos para terminarem aquele sofrimento”.
    "> Lembre-se que ele está apenas a sonhar e que não vai acontecer-lhe nada de mal. Acordá-lo só vai aumentar a probabilidade dos pesadelos continuarem. É preferível sair da cama e ir dormir para outro local, de forma a conseguir dormir mais tranquilamente.”
    azevedo

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  2. Excelente, excelente, excelente.
    Estás apto a escrever um livro. Porque não???
    Fontes

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