2012-07-31

M36 - O Telegrama
Chegamos a uma altura em que tinhamos “desligado” da guerra; ou era como se não existisse, para confirmar no terreno uma das máximas dos próceres do regime.
Doia-me por isso; e mais, por força desse desligar, viriamos a sofrer por  morte, sangue e medo, já depois do 25 de Abril, com as baixas na emboscada feita a camaradas da 3540.   
Agarravamos-nos sem descortinar, a uma loucura construida, para esquecimento do tempo que tardava. Prolongavamos os dias pelas noites, para que no limiar do esgotamento, a ansiedade esmorecesse. Contrariando o poeta, elevamos a loucura  a coisa  sadia; porque lúcidos, a imaginação teria de ser atenazada, sem o que nos levaria para o sofrimento do prisioneiro.
Os episódios sucediam-se no encadeado dos dias, e nestes, na volta dos ponteiros do relógio.

Luquembo …
Era mais um dia de calor viscoso, de um verão africano e obeso.
Estou a atravessar campo aberto, na passada rápida possivel, de fuga para uma sombra e cruzo-me com o furriel MCS, que em geito de saudação exclama: “Nada para o puto?”
O calor que  embota o espirito, retarda a reflexão sobre o sentido da mensagem; dois passos decorrridos, vislumbro um potencial convite
(será um sugestão para uma Nocal?)
Mas a sede por si só, não sendo de morte, não justifica  a alteração de rota; um passo mais e, do subconsciente do desejado, arranco o que vai revelar-se ser a aposta certa: “férias?” e ele replica: “YES!”
Está validado o refazer dos trajectos; e já chegamos … estamos a pedir duas bem frescas … tocamos as garrafas, num brinde mudo e saboreia-se o silência reconfortante do primeiro trago. Depois …
(este felizardo vai pela segunda vez de férias ao puto … fosse eu agora de férias e não voltava … deixa cá ver, rodamos há 4 meses  … já tinhamos do anterior, no que interessa ao caso, outros quatro … ele arranca já amanhã  … ok! é isso!... )
“Então faz-me o favor de na passagem da segunda  para a terceira semana de férias, colocares este telegrama dirigido ao alf T”, digo, enquanto que num papel, que descortinei num dos bolsos, junto palavras , em  frases entrecortadas por stops como era uso e costume à época. Dobrei o projecto do potencial telegrama, depois, no exterior relevei a data limite para expedição e com ar grave depositei-o nas mãos do MCS que generosa e cortezmente guardou sem ler.
Acabaram-se as loiras e saudamos: “adeus até ao meu regresso” contra “boas férias”
O episódio passou-me rapidamente para a memória arquivo das coisas imaginadas, loucas e construidas; amanhã, que não mesmo hoje, há mais e a que já foi, está esquecida.
Creio que pouco tempo depois de chegar ao Luquembo terei deixado de ser o homem pressionado, para enveredar pelo irónico; seria talvez uma das possibilidades  de  assegurar alguma razoabilidade de saude mental. A ironia é um estado em que as pessoas, de certo modo,  não se conseguem levar a sério, já porque têm consciência de que se descrevem a si próprias, estão sujeitas a mudança, têm memória das suas  contingência e fragilidade; um saber que não se sabe, uma libertação da liberdade.
Isto e muito mais, esteve na origem de ter adquirido uma “moradia“ no quimbo a norte da messes oficiais, tendo lá promovido convivios de toda a espécie e a oportunidade de travar as conversas mais delirantes e mais profundas desses dias.
Mas voltemos ao que viemos.        
No referencial tempo, estamos no décimo dia após ter estabelecido o pacto do telegrama com o MSC;  acabo de tomar o pequeno almoço e saio da messe para iniciar uma caminhada  de cerca de 5 minutos que me vai levar ao quartel. O que era promessa na alvorada, começa a confirmar-se , vem aí mais um dia de calor sofrido.
Ainda umas dezenas de passos a mais dentro do quartel e atinjo a zona da oficina auto e, como para mim digo de há uns tempos a esta parte, os galões permanecem  descansados; os mecânicos e os condutores cresceram como homens, não se perfilam com questões ou conversas que reflitam mal estar de maior e dão ares de viverem com alguma descontração, facto que para alguns disfarça de forma satisfatória as ansiedades ou angústias de que sofrem. E as tarefas são cumpridas dentro do prazo limite e de forma correta
Mais uns minutos de troca de impressões com o Mário, o amigo para sempre, e o grande o responsável por esta calma e sossego oficinal.
Fico mais um pouco, na passagem pelo “escritório” para reler umas anotações feitas de véspera num livro, arrumar uns papeis e escrever para casa.
 A manhã já vai longa  e não há vontade para continuar sentado; arranco para uma deambulação ou seja um passeio feito de lentidão, preferencialmente a perseguir zonas de sombra ... continuo e súbito, começo a dar conta da  cantar sincopado do códiog fonético internacional:  viktor-alfa-mónaco-oscar-sierra-lima-alfa … se de facto tivesse sido este cantar, estaria em sintonia com o que pensei.
(vamos lá … nem mais,  era o que andava a procurar)
Infleti para o local do cantante; um dos locais que propiciava a recolha de boas e actualizadas informações.
Entro sem bater, ou duvidar que sou bem vindo, que a porta está sempre aberta e o pessoal é de uma afabilidade extrema. Saudo todos os presentes que retribuiem, para rápido retomarem os afazeres com o que vem e vai pelo éter.
Poucos minutos decorridos chega o benjamim do grupo  com  protocolo das mensagens que terá acabado de entregar e quase em simultaneo o alf T, que com um sorriso aberto para todos, sauda e rápido apreende que está tudo dentro dos parametros de normalidade.
Mais uma pequena troca de impressões com o pessoal que está de serviço e retomamos uma conversa que tinhamos iniciado ao pequeno almoço.
Mas eis que começa a espraiar-se uma onda de cochichos e de risadas curtas; interrompemos para escutar uma mensagem, que está a ser retransmitida às claras, pelas TRMS do quartel de Malange:
“ … vou repetir, MUITOS PARABÉNS STOP MÃE E GÉMEOS DE PERFEITA SAÚDE”
(onde é que já ouvi isto?)
O alf T, súbito agitado e consciente do sentido da mensagem, arma um sorriso bonacheirão e pergunta:” ... e quem é o sortudo?”
(agora é que vão ser elas!)
Alguém exclama,  por entre uma risada “É você alferes”
Explodem risos desbragados e genuinos e uma expontânea salva de palmas, que da parte de alguns . termina com umas palmadas amigáveis nas costas do visado. O alf. T está suspenso, o sorriso anteriormente de bonomia, quebrou, como se ele já tivesse começado a deitar contas à vida. Mas as palmadas nas costas, de vigorosas,  ajudam-no  a recompor-se; o rosto reassume o ar rosado e saudável que lhe é habitual e começa a agradecer o mar de felicitações
Da minha parte, acompamho todos os votos dos sitiantes, como só um irresponsável senior conseguriia
Com o ponteiro dos relógio está sobre as 12 horas e convoco o camarada “sortudo” para um pré pranteal; ainda estou em fase de adaptação para o que deve procurar-se  que aconteça a seguir. Vimos para o exterior,  no instante em que está a passar uma viatura, sinalizo ao condutor e forço uma boleia até à messe, que o sol vai alto e queima.
Chegados, divulgo a “boa nova” e o alf T agora já quase num registo de eufórico, dá instruções ao Martins, para que abra uma conta a fim de carregar os consumos dos camaradas que vão solidarizar-se com a noticia
O último a chegar é o Comandante, que vem à boleia, no jeep do cap AA
Cumprimenta e como é hábito chega-se ao balcão, onde já o aguarda o whisky da ordem; antes do primeiro golo, já está a ser esclarecido sobre o motivo do bar aberto. Molha a palavra, avança dois passos, na direcção do alf T, dá os parabéns e brinda.
O cap AA, habitualmente dado ao remanso, desta vez fez uma leitura muito rápida das circunstncias e lesto no seu passo miudinho, avança para quarto, de onde regressa com três garrafas de espumante, que, indubitavelmente felicissimo, deposita  no balcão e, alto e bom som, dá parabéns especias e prossegue esclarecendo que as garrafas são para brindar no final do almoço.
O Alf. T desmultiplica-se em agradecimentos e continua na conversa com o Cmdt; acabam de juntar-se a eles o cap AA e o maj R, quando de relance ouço: ”então o nosso alf. T tem interessem em antecipar as suas férias?”
(oh!, oh!  isto está a ficar um bocado enviezado, com esta boca do Cmdt)
“Sim, sim, se o Sr. Cmdt estiver de acordo!”
(Tenho de tratar muito rapidamente da passagem ao plano B! )
Na primeira oportunidade crio um espaço junto do Cmdt e reporto-lhe a génese de todo o acontecimento  e acrescento que considerava vantajoso que ele não entrasse no cenário, designadamente com a  insistência na antecipação de férias, e que, se necessário, estava disponivel para retratar-me como o mau da fita.
(agora é que vai ser de partir a loiça … já da última vez, me tinha recomendado para ter cautela)
Mas o homem parece estar manifestamente bem no meu plano A. Olha em redor, avalia a animação de cada um e de todos
(está a gostar … este sorriso de ironia fina …  olha para o copo  … vai pedir outro wishky)
vai ao balcão, pousa o copo  e com um movimento quase impercetivel sinaliza que quer mais gelo; regressa , fita-me com o que designo de olhar atravessado nº1, inclina-se ligeiramente, e  de forma reservada diz: “OK!, mas primeiro vamos dar cabo das garrafas do cap AA”.
Assim se cumpriu …    
azevedo

1 comentário:

  1. Parabens!...
    Estás um nato contador de histórias.
    Fazes-me lembrar o Malhadinhas.
    Ficamos a aguardar por mais.

    Um grande abraço,
    José Ferreira

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