Chegamos a
uma altura em que tinhamos “desligado” da guerra; ou era como se não existisse,
para confirmar no terreno uma das máximas dos próceres do regime.
Doia-me por
isso; e mais, por força desse desligar, viriamos a sofrer por morte, sangue e medo, já depois do 25 de Abril,
com as baixas na emboscada feita a camaradas da 3540.
Agarravamos-nos
sem descortinar, a uma loucura construida, para esquecimento do tempo que
tardava. Prolongavamos os dias pelas noites, para que no limiar do esgotamento,
a ansiedade esmorecesse. Contrariando o poeta, elevamos a loucura a coisa
sadia; porque lúcidos, a imaginação teria de ser atenazada, sem o que
nos levaria para o sofrimento do prisioneiro.
Os episódios
sucediam-se no encadeado dos dias, e nestes, na volta dos ponteiros do relógio.
Luquembo …
Era mais um
dia de calor viscoso, de um verão africano e obeso.
Estou a
atravessar campo aberto, na passada rápida possivel, de fuga para uma sombra e
cruzo-me com o furriel MCS, que em geito de saudação exclama: “Nada para o
puto?”
O calor
que embota o espirito, retarda a reflexão
sobre o sentido da mensagem; dois passos decorrridos, vislumbro um potencial
convite
(será um
sugestão para uma Nocal?)
Mas a sede
por si só, não sendo de morte, não justifica
a alteração de rota; um passo mais e, do subconsciente do desejado,
arranco o que vai revelar-se ser a aposta certa: “férias?” e ele replica:
“YES!”
Está validado
o refazer dos trajectos; e já chegamos … estamos a pedir duas bem frescas …
tocamos as garrafas, num brinde mudo e saboreia-se o silência reconfortante do
primeiro trago. Depois …
(este
felizardo vai pela segunda vez de férias ao puto … fosse eu agora de férias e
não voltava … deixa cá ver, rodamos há 4 meses
… já tinhamos do anterior, no que interessa ao caso, outros quatro … ele
arranca já amanhã … ok! é isso!... )
“Então faz-me
o favor de na passagem da segunda para a
terceira semana de férias, colocares este telegrama dirigido ao alf T”, digo,
enquanto que num papel, que descortinei num dos bolsos, junto palavras ,
em frases entrecortadas por stops como
era uso e costume à época. Dobrei o projecto do potencial telegrama, depois, no
exterior relevei a data limite para expedição e com ar grave depositei-o nas
mãos do MCS que generosa e cortezmente guardou sem ler.
Acabaram-se
as loiras e saudamos: “adeus até ao meu regresso” contra “boas férias”
O episódio
passou-me rapidamente para a memória arquivo das coisas imaginadas, loucas e
construidas; amanhã, que não mesmo hoje, há mais e a que já foi, está
esquecida.
Creio que
pouco tempo depois de chegar ao Luquembo terei deixado de ser o homem
pressionado, para enveredar pelo irónico; seria talvez uma das
possibilidades de assegurar alguma razoabilidade de saude
mental. A ironia é um estado em que as pessoas, de certo modo, não se conseguem levar a sério, já porque têm
consciência de que se descrevem a si próprias, estão sujeitas a mudança, têm
memória das suas contingência e
fragilidade; um saber que não se sabe, uma libertação da liberdade.
Isto e muito
mais, esteve na origem de ter adquirido uma “moradia“ no quimbo a norte da
messes oficiais, tendo lá promovido convivios de toda a espécie e a oportunidade
de travar as conversas mais delirantes e mais profundas desses dias.
Mas voltemos
ao que viemos.
No referencial
tempo, estamos no décimo dia após ter estabelecido o pacto do telegrama com o
MSC; acabo de tomar o pequeno almoço e
saio da messe para iniciar uma caminhada de cerca de 5 minutos que me vai levar ao
quartel. O que era promessa na alvorada, começa a confirmar-se , vem aí mais um
dia de calor sofrido.
Ainda umas dezenas
de passos a mais dentro do quartel e atinjo a zona da oficina auto e, como para
mim digo de há uns tempos a esta parte, os galões permanecem descansados; os mecânicos e os condutores
cresceram como homens, não se perfilam com questões ou conversas que reflitam
mal estar de maior e dão ares de viverem com alguma descontração, facto que
para alguns disfarça de forma satisfatória as ansiedades ou angústias de que
sofrem. E as tarefas são cumpridas dentro do prazo limite e de forma correta
Mais uns
minutos de troca de impressões com o Mário, o amigo para sempre, e o grande o responsável
por esta calma e sossego oficinal.
Fico mais um
pouco, na passagem pelo “escritório” para reler umas anotações feitas de véspera
num livro, arrumar uns papeis e escrever para casa.
A manhã já vai longa e não há vontade para continuar sentado; arranco
para uma deambulação ou seja um passeio feito de lentidão, preferencialmente a
perseguir zonas de sombra ... continuo e súbito, começo a dar conta da cantar sincopado do códiog fonético
internacional: viktor-alfa-mónaco-oscar-sierra-lima-alfa
… se de facto tivesse sido este cantar, estaria em sintonia com o que pensei.
(vamos lá …
nem mais, era o que andava a procurar)
Infleti para
o local do cantante; um dos locais que propiciava a recolha de boas e actualizadas
informações.
Entro sem
bater, ou duvidar que sou bem vindo, que a porta está sempre aberta e o pessoal
é de uma afabilidade extrema. Saudo todos os presentes que retribuiem, para
rápido retomarem os afazeres com o que vem e vai pelo éter.
Poucos minutos
decorridos chega o benjamim do grupo com
protocolo das mensagens que terá acabado de entregar e quase em
simultaneo o alf T, que com um sorriso aberto para todos, sauda e rápido
apreende que está tudo dentro dos parametros de normalidade.
Mais uma
pequena troca de impressões com o pessoal que está de serviço e retomamos uma
conversa que tinhamos iniciado ao pequeno almoço.
Mas eis que
começa a espraiar-se uma onda de cochichos e de risadas curtas; interrompemos
para escutar uma mensagem, que está a ser retransmitida às claras, pelas TRMS
do quartel de Malange:
“ … vou
repetir, MUITOS PARABÉNS STOP MÃE E GÉMEOS DE PERFEITA SAÚDE”
(onde é que
já ouvi isto?)
O alf T,
súbito agitado e consciente do sentido da mensagem, arma um sorriso bonacheirão
e pergunta:” ... e quem é o sortudo?”
(agora é que
vão ser elas!)
Alguém
exclama, por entre uma risada “É você
alferes”
Explodem risos
desbragados e genuinos e uma expontânea salva de palmas, que da parte de alguns
. termina com umas palmadas amigáveis nas costas do visado. O alf. T está
suspenso, o sorriso anteriormente de bonomia, quebrou, como se ele já tivesse
começado a deitar contas à vida. Mas as palmadas nas costas, de vigorosas, ajudam-no
a recompor-se; o rosto reassume o ar rosado e saudável que lhe é
habitual e começa a agradecer o mar de felicitações
Da minha
parte, acompamho todos os votos dos sitiantes, como só um irresponsável senior
conseguriia
Com o ponteiro
dos relógio está sobre as 12 horas e convoco o camarada “sortudo” para um pré
pranteal; ainda estou em fase de adaptação para o que deve procurar-se que aconteça a seguir. Vimos para o exterior, no instante em que está a passar uma viatura,
sinalizo ao condutor e forço uma boleia até à messe, que o sol vai alto e
queima.
Chegados,
divulgo a “boa nova” e o alf T agora já quase num registo de eufórico, dá
instruções ao Martins, para que abra uma conta a fim de carregar os consumos
dos camaradas que vão solidarizar-se com a noticia
O último a
chegar é o Comandante, que vem à boleia, no jeep do cap AA
Cumprimenta e
como é hábito chega-se ao balcão, onde já o aguarda o whisky da ordem; antes do
primeiro golo, já está a ser esclarecido sobre o motivo do bar aberto. Molha a
palavra, avança dois passos, na direcção do alf T, dá os parabéns e brinda.
O cap AA,
habitualmente dado ao remanso, desta vez fez uma leitura muito rápida das
circunstncias e lesto no seu passo miudinho, avança para quarto, de onde
regressa com três garrafas de espumante, que, indubitavelmente felicissimo, deposita no balcão e, alto e bom som, dá parabéns
especias e prossegue esclarecendo que as garrafas são para brindar no final do
almoço.
O Alf. T
desmultiplica-se em agradecimentos e continua na conversa com o Cmdt; acabam de
juntar-se a eles o cap AA e o maj R, quando de relance ouço: ”então o nosso alf.
T tem interessem em antecipar as suas férias?”
(oh!, oh! isto está a ficar um bocado enviezado, com esta
boca do Cmdt)
“Sim, sim, se
o Sr. Cmdt estiver de acordo!”
(Tenho de
tratar muito rapidamente da passagem ao plano B! )
Na primeira
oportunidade crio um espaço junto do Cmdt e reporto-lhe a génese de todo o acontecimento
e acrescento que considerava vantajoso
que ele não entrasse no cenário, designadamente com a insistência na antecipação de férias, e que,
se necessário, estava disponivel para retratar-me como o mau da fita.
(agora é que
vai ser de partir a loiça … já da última vez, me tinha recomendado para ter
cautela)
Mas o homem parece
estar manifestamente bem no meu plano A. Olha em redor, avalia a animação de
cada um e de todos
(está a
gostar … este sorriso de ironia fina …
olha para o copo … vai pedir
outro wishky)
vai ao balcão,
pousa o copo e com um movimento quase
impercetivel sinaliza que quer mais gelo; regressa , fita-me com o que designo
de olhar atravessado nº1, inclina-se ligeiramente, e de forma reservada diz: “OK!, mas primeiro
vamos dar cabo das garrafas do cap AA”.
Assim se
cumpriu …
azevedo
Parabens!...
ResponderEliminarEstás um nato contador de histórias.
Fazes-me lembrar o Malhadinhas.
Ficamos a aguardar por mais.
Um grande abraço,
José Ferreira