Um dos icones da guerra colonial, é feito
de palavras: “adeus até ao meu regresso”.
Mantem-se no imaginário dos expedicionários
que o verbalizaram ou sonharam poder fazê-lo, bem como dos familiares, das noivas
e dos amigos que, por entre dificuldades várias, ansiaram por ouvi-lo, quer pelas
ondas da rádio (na altura a EN), quer, com o acrescento da imagem do falante, nas
emissões da então RTP; … afinal de toda uma geração.
O epifenómeno nasceu com a gravação das
mensagens natalícia e de fim de ano, reservadas ao corpo expedicionário. As que
se destinavam a serem emitidas no que, à época, era o canal único de TV, exigiam recursos técnicos com
alguma sofisticaçãp; porém, quase sempre ficaram aquém dos objectivos, devido à
manifesa incapacidade ou intenção, de produção de cenários naturais verosimeis;
os actores principais embora empenhados, reflectiam problemas diversos da
sociedade de que o vira nascer, designadamente a fraca escolaridade (cerca de
25% dos soldados não tinham na altura a 4ª classe), a dificuldade de
sociabilidade, e um natural pouco à vontade para enfrentar procedimentos técnicos que eram
pouco usuais ou de um cronometro omnipresene
Apesar de tudo, o “adeus até ao meu
regresso” acabou por se tornar um assunto
abrangente; ou ainda se quisermos ir mas longe, susceptivel de se considerar
como a singular, para não dizer a única frase “patriótica” que os mobilizados
proferiam; foi também a mais transmitida nas acções de propaganda, que
pretendia mostrar que os soldados estavam bem e se recomendavam.
Mas, cesse o julgamento porque "melhor experimentá-lo que julgá-lo", como escreveu o vate.
Não foi o caso tê-lo experimentado, mas andei lá perto depois de ter combinado uma colaboração em part time na gravação das mensagens de Natal da CCS.
Não foi o caso tê-lo experimentado, mas andei lá perto depois de ter combinado uma colaboração em part time na gravação das mensagens de Natal da CCS.
E em que circunstâncias!
Estavamos ainda no sexto mês de
comissão, que era também o penúltiplo de 1972. Numa conversa, que se poderia
designar de programação informal de actividades-de-que-passe-o-tempo, ficaram
definidas duas intervenções:
Primeira, a de programar e levar à
cena uma festa de natal
Segunda, a de, conforme acima refiro, gravar
mensagens natalicias de pessoal da contingentação da CCS, isto é do, como é
sabido, recrutamento angolano, que como era uso e costume , era incorporado
para completar os efectivoso das unidades metropolitnas.
É de elementar justiça, relevar que o
grande dinamizador destas actividades, foi o furriel M. Para além de pessoa com
singulares conhecimentos técnicos de electromecanica, que não se escusava compartilhar,
conseguia brilhar em capacidade criativa onde acontecia a escassez de meios e não
menos importante, era senhor de uma boa disposicão contagiante.
Portanto, o homem certo para liderar
os dois projectos em carteira e como se verá, torná-las um acontecimento.
As gravações, foram a primeira acção a
ser agendada.
Tratando-se apenas de registo de voz,
bastavam um gravador e um microfone; acessoriamente era necessário disposição e
talento para sortear os contemplados, disponibilidade para ajudar onde
necessário, na estruturação da mensagem, no treino de dicção, ou na gravação da
mesma e anotar identificação do falante, bem como os contactos dos que se
esperava viessem a escuta-la.
Na data-hora aprazados, avancei para o
lugar combinado, que era a secção de radiomontadores, Já a aguardar, estavam o
furriel M, o cabo C e mais dois ou três pandegos, habituais nas nossas práticas
noturnas; mais tarde chegaram os alferes A. e M.. No exterior continuava a
aguardar o grupo dos principais interessados na gravação (que no que se segue serão
designaos de mensageiros), grupo constituido por pessoal de cor; era manifesta
uma capacidade de desenrascanço e um espirito de iniciativa suficiente que
levavam a acreditar que, quase todos, já estivessem de posse de um papel com a relação
das pessoas a que vão dedicar a mensagem e o teor da mesma.
Nós, tinhamos feito o trabalho de casa
e também estavamos ansiosos por começar.
Eu o furriel M. e o cabo C.
sentamo-nos e um lado da mesa, e no oposto ficou uma cadeira vazia a aguardar por cada um dos mensageiro.
O furriel M. verifica as ligações do
equipamento, que se encontrava na extrema da mesa próxima do lugar que ocupava e
deslocou uma caixa de cartão para ficar em frente, talvez ligeiramente à
direita do eixo da cadeira vazia.
Pessoa menos avisada dirá que esta
caixa em tempos, seviu para acondicionar um par de sapatos e agora,
considerando a tarefa que está em curso e o facto de sob a tampa emegir um cabo
que termina no gravador master, albergará um microfone.
Obtido o OK, o cabo C, levanta-se,
entreabre a porta e chama o primeiro mensageiro da lista. Ele entra e sauda,
após o que lhe sugerido que se ocupe a cadeira vazia. Sentado, no rosto um
sorriso curto e o olhar de uma criança assustada que enfrenta pela primeir vez
um juri de exame, o que inesperadament me traz, da memória profunda, registos
da minha 4ª classe; mãos apoiadas e pouco contidas, volteiam o papel em eu
escreveu a mensagem que espera gravar. Esforçamo-nos por criar um clima de descontração,
dizendo-lhe que estamos na época natalicia e que dadas as circunstâncias queremos,
ou esperamos para todos, uma noite bem passada. Seguem-se duas ou três
perguntas, indagando sobre as pessoas a quem ele dedica a mensagem, nome das
namoradas, e coisas assim. O sorriso fica mais solto, e amigável.
Atingimos o nivel de decontração
suficiente para testar o que quer gravar … comoça a ler …faz-se um ou outro
trocadilho com o que vai dizendo … quando conclui, ouve-se um “muito bem!”, ao
que alguém do lado acrescenta um “vai um golinho de Nocal?” (não se oferece uma
garrafa, porque de facto as disponiveis não chegam para todos) …
Parece que está tudo a correr conforme
previsto e necessário a um bom momento de descontração.
Passa-se então à segunda fase, a de
informação sobre o procedimento de gravação
Aqui, no esboço de guião que tinhamos
feito, relevava-se a necessidade de informar sobre a rotina de gravação e
garantir que, no início desta, a atenção do mensageiro estivesse focada no
papel em que tinha escrito a mensagem; para o efeito, havia que ser algo
incisivo no enunciar das instruçõeso, rápido no acessório, mais lento e
enfático no fundamental
Tendo em consideração estes
pressupostos, a mensagem final, teria de ser, algo imperativa, qualquer coisa como (e cito de memória): “rapaz, tens aqui o gravador onde as
palavras vão ficar registadas, o microfone está nesta caixa, para estar
protegido do barulho que estamos a fazer, … as palavras são as que estão neste
papel que colocas aqui à tua frente e que já sabes ler na perfeição… a caixa do
microfone está aqui à direita, coloca a
mão junto da tampa da caixa … ao meu sinal, silêncio total, … retiramos a tampa da caixa, … sem desviares o olhar do papel, sacas o
microfone e começas a ler … o microfone sempre bem junto da boca … olha ali (estava
o cabo C. exemplifica com um microfone alternativo)… compreendido??? … vou
repetir …”
Acenou com a cabeça, quase sem
descolar o olhar do papel, o que é bom.
Sem mais delongas dá-se uma ordem
final: “atenção, ao contar “três”, tens de, sem tirar o olhar do papel, pegar
no microfone, e começas a ler! … silêncio! … um, dois e TRÊS!”
Acto continuo o furriel M. acciona o
gravador e com a outra mão entreabre a caixa de cartão, para facilitar o acesso
ao micro.
E … o soldado, como bom soldado, cumpre conforme
ordenado, retira o artefacto da caixa de cartão, aproxima-o da boca e começa a
debitar a mensagem, … mas hélas! interrompe com exclamação súbita, a que se
segue uma grande e genuina gargalhada; ainda estou a ouvir: “aqui fala o
soldado F … c’um C*****HO!!!…”.
Risadas desbragadas, que se tentam
controlar para não colocar de sobreaviso os que estão no exterio, mas não é
fácil.
Depois far-se-á silêncio para gravar a
sério. E a mensagem que em situação normal seria grave com laivos de solenidade,
a reflectir as infinitas saudades que
cada um sentia, evidencia agora uma
quota de optimismo e de partilha e adivinham-se-lhe, a intervalos, sorrisos
contidos.
Veio depois outro mensageiro e mais
outro e de cada vez o mesmo resultado fina de boa disposição, e de plena
aceitaçao e participação no guião que tinhamos criado.
Creio que todos, os que foram
seleccionados para gravar a mensagem, tiveram oportunidade de sentir o que
afinal era uma oferta de abertura de relacionamento, que teve reflexos
positivos nos tempos que se seguiram.
Na parte que me toca, não foram poucas
as vezes e os dias em que alguns dos mensageiros, depois, me visitaram na
oficina, onde habitualmente parava, para saudar, dois dedos de conversa e em geito de memórias boas, perguntar:
“Alfero, hoje não há gravações?”
Azevedo
Azevedo